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Boa Razão

Eduardo Teixeira de Carvalho Junior 

UniCuritiba

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Publicado em 15/03/2022

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Embora esteja mais ligado ao campo jurídico, o termo “boa razão” está articulado com as transformações mais amplas que ocorreram no iluminismo português, sobretudo no governo pombalino, caracterizado por uma profunda reformulação no quadro administrativo do reino, alinhado com os princípios da utilidade e da racionalidade. Além da famosa “lei da boa razão”, usos e significados deste termo podem ser encontrados também em outros textos do século XVIII, como nos documentos da Reforma da Universidade de Coimbra e nas obras de alguns iluministas portugueses.

Vale lembrar que, de acordo com Descartes, a razão é a capacidade de julgar bem e de definir o verdadeiro do falso, aproximando-se da ideia de bom senso. A razão é igual em todos os homens, as diferenças de opinião e julgamento não significam que algumas pessoas são mais racionais do que outras, para Descartes, as diferenças existem por uma questão de orientação. Ou seja, os caminhos percorridos pelo pensamento e os fatores levados em consideração poderiam levar a conclusões diferentes, de tal modo que: “Não basta ter o espírito são; o principal é aplicá-lo bem” (DESCARTES, 1996: 5). Assim, a preocupação de Descartes era saber qual o melhor caminho, ou seja, o método para se chegar à verdade. De forma semelhante, o dicionário de Rafael Bluteau define razão como a “principal faculdade da alma com a qual o homem distingue o bem do mal, e o que é verdade e o que é falso, ou a faculdade de conhecer a coisa na sua matéria” (BLUTEAU, 1720 : 124). E ainda acrescenta o seguinte: “A razão bem usada, sempre escolhe, mal usada, em mil erros tropeça” (BLUTEAU, 1720 : 124). A mesma ideia aparece neste trecho do Discurso do Método: “as maiores almas são capazes dos maiores vícios, assim como das maiores virtudes; e aqueles que só caminham muito lentamente podem avançar muito mais, se sempre seguirem o caminho certo, do que aqueles que correm e dele se afastam” (DESCARTES, 1996: 5). Assim, inicialmente, poderíamos dizer que a “boa razão” é a razão bem aplicada e que há duas formas principais de utilização do termo “boa razão”: uma no campo epistemológico, relacionado à questão do método, outra de cunho moral e ético, associada à equidade e justiça, no sentido do que convém que se faça em determinadas circunstâncias.

Na historiografia portuguesa o termo “boa razão” passou a ganhar importância a partir da publicação dos comentários de José Homem Correia Telles em 1824 sobre a Lei de 18 de agosto de 1769, que desde então, passou a ser denominada de “lei da boa razão” (TELLES, 1824). Considerando a popularidade desta obra, é provável que a interpretação de Telles tenha contribuído para fazer com que esta lei se tornasse referência para a compreensão das mudanças promovidas pelas Luzes no direito português. Apesar de tudo, o termo “boa razão” somente é mencionado no item nono da lei, trecho que remete ao Livro III das Ordenações Filipinas. Assim, a “lei de 18 de agosto de 1769” pode ser compreendida como uma alteração do Livro III das Ordenações Filipinas (1603), especificamente na parte que tratava de possíveis lacunas e casos omissos nas leis do reino. Em casos omissos, como nos “crimes de pecado”, as Ordenações Filipinas recomendavam que fossem julgados pelo direito canônico; caso não fosse matéria de pecado dever-se-ia recorrer às leis romanas (Imperiais, Corpus Iuri Civili) respeitando a seguinte observação: “As quais Leis Imperiais mandamos somente guardar pela boa razão em que são fundadas” (Ordenações Filipinas, 1603: 664). Percebe-se que o termo “boa razão” é utilizado aqui como um princípio de bom senso, como um pré-requisito para se avaliar a adequação e aplicação da norma no contexto específico da sociedade portuguesa. O texto da lei ainda acrescenta que se não houvesse uma resolução por meio de nenhuma destas fontes, recorrer-se-ia às glosas de Acúrcio e Bártolo; em última instância, se o caso permanecesse sem uma solução, recorria-se a uma consulta ao rei, cuja resolução passaria a servir de referência para futuros casos semelhantes (Ordenações Filipinas, 1603: 664).

A “lei de 18 de agosto de 1769” estabelece que o princípio da “boa razão”, posto pelas Ordenações Filipinas, havia sido corrompido com o passar do tempo, a jurisprudência foi “pondo em esquecimento as Leis Pátrias, fazendo-se uso somente das dos romanos”. Assim, a “lei de 18 de agosto de 1769” retoma e reafirma o fundamento da “boa razão” que deveria nortear o uso das leis romanas, pois muitas das leis romanas haviam sido fundamentadas em diferentes circunstâncias, pois “tiveram por fundamentos outras razões”, baseadas em “particulares costumes dos mesmos Romanos, que nada podem ter de comuns com os das Nações, que presentemente habitam a Europa” (SILVA, 1830: 4). A lei de 1769 definia o princípio da “boa razão” da seguinte maneira: [...] aquela boa razão, que consiste nos primitivos princípios, que contém verdades essenciais, intrínsecas, e inalteráveis, que a Ética dos mesmos Romanos havia estabelecido, e que os Direitos Divino, e Natural, formalizaram para servirem de Regras Morais, e Civis entre o Cristianismo (SILVA, 1830: 5). Como é possível perceber, a “boa razão” está associada a “verdades essenciais, intrínsecas e inalteráveis”, ou seja, uma verdade universal independente do tempo e do espaço, capaz de ser atingida pela “boa razão”. O texto da lei indica ainda que a “boa razão” deveria constituir o espírito das leis, “Leis das Nações Cristãs, iluminadas, e polidas” de acordo com os “novos tempos” de luzes das “nações civilizadas”. Outra diferença importante em relação ao Código de 1603 é seu caráter laicizante, enfatizando que crimes de pecado “pertencem privativa, e exclusivamente ao foro interior e a espiritualidade da Igreja”, extinguindo qualquer possibilidade de confusão entre a esfera espiritual e a esfera temporal. Além disso, as glosas e opiniões de Acúrsio e Bartolo não poderiam mais ser alegadas em juízo.

Mas qual seria a diferença entre o uso do termo “boa razão” no século XVII e no século XVIII? Conforme aponta Nuno José Espinosa Gomes da Silva, o sentido do termo “boa razão” empregado no texto das Ordenações de 1603 estava subordinado aos princípios da escolástica, era uma razão preocupada em descobrir a “verdade” do texto jurídico, enquanto no século XVIII “a razão insatisfeita, levanta os olhos do texto, despreza-o e procura, antes, uma ‘verdade’ intemporal” (SILVA, 2006: 457). A lei procurava induzir uma interpretação que fosse adequada aos interesses do governo; somente assim uma interpretação da lei poderia ser considerada legítima. O objetivo era evitar outras interpretações, que embora pudessem ser consideradas legítimas sobre o ponto de vista seiscentista, já não estavam mais de acordo com o ponto de vista setecentista (MARCOS, 2006: 176). Ou seja, queria-se uma única interpretação, aquela conveniente e útil ao governo e para isso era preciso eliminar o “tradicional labirinto opinativo” retirando a autoridade das correntes jurídicas tradicionais que fragilizavam a vontade do rei (MARCOS, 2006: 181).

O contraste entre a razão seiscentista e a razão iluminista também pode ser percebido na tensão entre dois modelos ou formas de representação da sociedade e do poder: uma tradicional, que representa a sociedade como um corpo, e outra moderna, individualista (HESPANHA; XAVIER, 1998: 113). No século XVIII, opera-se uma mudança importante: deixa-se de pensar no poder enquanto a administração de uma ordem objetiva das coisas, o poder passa a ser concebido mais como um ato de vontade (HESPANHA; XAVIER, 1998: 117). Neste sentido, a “boa razão” se aproxima do conceito de “razão de estado”, que vai se impondo como um novo paradigma ao longo do século XVIII. De forma geral, a “razão de estado” está associada a um conjunto de práticas políticas que tem como objetivo atender aos interesses do Estado. Conforme definido no dicionário de Bluteau, se for boa e digna de louvor, a “razão de estado” leva ao objetivo pretendido conforme a utilidade temporal do Príncipe, sem, contudo ferir a lei divina (BLUTEAU, 1720: 127).

No campo da ética e da moral o termo “boa razão” é muito recorrente. Nos Apontamentos para a Educação de um Menino Nobre (1734) Martinho de Pina e Proença já advertia sobre a necessidade de se repreender as ações que se opõem aos “ditames da boa razão” (PROENÇA, 1734: 117). Da mesma forma, Teodoro de Almeida, na sua Recreação Filosófica, no tomo dedicado a Filosofia Moral, discute a dimensão ética da “boa razão” quando discorre sobre as regras que o homem deve seguir no “amor a si mesmo”. De acordo com Almeida, esta paixão que Deus imprimiu em nossa alma precisa de um princípio “moderador” que regule os impulsos da paixão, este principio moderador é a “boa razão”. Quando o amor a si mesmo se governa pelas leis da “boa razão”, é justo, virtuoso e louvável, mas quando não respeita os limites da “boa razão”, “tudo é mal, é vício, é crime” (ALMEIDA, 1800, [t.10]: 187).

No Verdadeiro Método de Estudar (1746), de Luiz António Verney, o termo “boa razão” é muito utilizado nas cartas sobre ética, onde é analisado o direito natural. Para Verney, a ética é a parte da filosofia que mostra aos homens a verdadeira felicidade e regula suas ações para consegui-lo, é uma “coleção de preceitos que a luz de uma boa razão mostra serem necessários ao Homem para fazer ações honestas e também úteis à sociedade civil” (VERNEY, 1950, [t.3: 254-259). Para Verney, o direito natural representa uma nova abordagem sobre a justiça, não mais fundamentada exclusivamente na letra da lei, o que requer erudição, mas adequada aos ditames da filosofia moderna, cujo método, inspirado nas descobertas das ciências da natureza, fundamentavam a verdade menos na autoridade dos textos (doutores) e sim nas evidências da observação e da experiência, o que corresponde a toda uma nova lógica e um novo método. De acordo com Verney, o princípio da “boa razão” deveria ser aplicado nas outras disciplinas: para ser um bom teólogo, por exemplo, seria preciso “não só repetir o que leu, como Papagaio; mas resolver os casos com os princípios da boa razão”. Por isso, “lei que não é deduzida da boa razão não merece o nome de lei” (VERNEY, 1950, [t.3]: 261) e a falta dos princípios da boa razão ocasionava uma série de “embaraços”, pois a maior parte dos juízes examinavam as leis sem se servirem do raciocínio, “só se servem da memória”. Assim, como seria mencionado nos novos Estatutos da Universidade de Coimbra, Verney também criticava o excesso de erudição, argumentando que ela deveria estar subordinada à “boa razão”. Também destaca a importância do direito natural, que assume um papel central na jurisprudência, pois quem tem conhecimentos do direito natural julga melhor os casos não usuais, se comparado com aqueles que seguem apenas o que diz a lei, “julga melhor qualquer caso do que os que afectam esquisita erudição” (VERNEY, 1950,[t.3]: 263).

Um autor que teve muita influência no contexto português nos debates sobre a ética e o direito natural foi o alemão Samuel Pufendorf, autor da obra Os deveres do homem e do cidadão (1691). Pufendorf considerava o direito natural uma das três fontes sobre o conhecimento do homem de seu dever. Enquanto o direito civil prescreve os deveres do homem como “membro de uma cidade ou comunidade” e a teologia moral sobre os deveres do homem enquanto cristão, o direito natural é definido por ele como o direito comum a todas as nações, que corresponde aos deveres do homem como “criatura sociável com o restante da humanidade”. Daí se deduz o caráter atemporal e universal do direito natural, pois “Devemos ser humanos, antes de sermos cristãos; e quem não ouvir a voz da natureza não irá ouvir mais a voz da lei ou a do Evangelho” (PUFENDORF, 2007: 469). Outro aspecto importante é a proeminência da razão, a voz da razão é pré-requisito para se ouvir a voz da lei de Deus, assim como das leis e das constituições. Esses princípios levaram Pufendorf a criticar as leis baseadas no costume: “O costume é a opinião e a decisão de uma multidão cega, e não de sábios e sensatos” (PUFENDORF, 2007: 445).

Pufendorf, assim como Grócio, é mencionado nos documentos da Reforma da Universidade como um autor de referência no direito natural, mas é recomendado com certa cautela, considerado suspeito na fé devido a sua relação com a religião protestante. Verney, por exemplo, advertia para o fato de ser “herege”, e por isso, recomendável apenas aos mestres. Contudo, mesmo assim, segundo ele, quem não tivesse outra opção, poderia ler Pufendorf. O segundo fator que o colocava sob suspeita era a ênfase na superioridade do direito natural perante as outras fontes do direito. No tratado de direito natural de Tomás Antônio Gonzaga, por exemplo, observa-se um afastamento de algumas premissas de Grócio e Pufendorf, na medida em que deduz o direito natural a partir da ideia de Deus, entendido como a base de todo o direito (GONZAGA, 2004: 15). De acordo com António Pedro Homem, o jusracionalismo é uma nova forma de pensar o direito e o Estado, baseado na separação entre Teologia e Direito, por uma concepção secularizada do direito, tolerância religiosa, noção de ciência e método (HOMEM, 2010: 37). Em Portugal a Teologia ocupava um lugar fundamental como guia ético-moral, por isso, para a maioria dos reformadores portugueses, a modernização do reino deveria ocorrer sem abalar a fidelidade à religião católica. A historiografia costuma apontar este aspecto como um traço marcante do iluminismo português, que já foi definido como iluminismo católico: conciliar a necessidade de modernização sem perder os vínculos com a religião. Neste sentido a “razão de estado”, conforme definido por D. Luís da Cunha, consistia em conciliar a “utilidade temporal” do reino com a “utilidade espiritual da religião” (CUNHA, 1820).

No contexto português, o conceito de “boa razão” vai incorporar um caráter ideológico na medida em que seu duplo significado, moral e epistemológico, passa a ser utilizado para fazer oposição à “razão escolástica” sustentada pelos jesuítas. A necessidade de modernizar o reino, especialmente no caso do sistema de ensino, levaria ao choque com os jesuítas, defensores da tradição escolástica. No Compendio da Universidade, os jesuítas são considerados traidores e responsáveis por todo o atraso da cultura portuguesa, os jesuítas teriam envolvido a jurisprudência do reino em um mar de trevas, permitiram maliciosamente que as leis pátrias fossem deixadas de lado para dar lugar ao direito romano, que, além disso, eram “contaminadas” pelas opiniões de Acúrcio e Bartolo. Seguindo as recomendações estabelecidas pela Lei de 18 de agosto de 1769, no Compêndio o direito romano não é abandonado, mas colocado em segundo plano, podendo ser utilizado com bom senso, ou seja, de acordo com a “boa razão” (Compêndio Histórico, 2011: 317). Da mesma forma o direito natural é valorizado pela sua relação com a razão, considerado como um importante fundamento para a compreensão do justo. Já nos Estatutos da Universidade é mencionado que a razão dos escolásticos não poderia ser considerada uma “boa razão” devido aos abusos cometidos pelos jesuítas: “por se governarem nos seus raciocínios, não pela razão bem dirigida, e ilustrada pela luz da revelação; mas sim escurecida pela corrupção da natureza, e cegamente guiada pelos seus próprios caprichos, e paixões” (Estatutos da Universidade de Coimbra, 1772: 132).

A “boa razão” acabou servindo para fazer referência a todo um conjunto de medidas implementadas pelo Marquês de Pombal representando um alinhamento do reino com as tendências do jusnaturalismo moderno, ligada ao processo laicização e organização do Estado a partir de uma racionalidade mais adequada aos novos tempos. A defesa dos interesses do reino por meio de uma forma mais útil e racional de governar e administrar se articulava com a necessidade de reformar o sistema de ensino para formar homens de “boa razão”. Eram necessárias medidas “proporcionadas ao estilo de Portugal”. Neste sentido, a “boa razão” funcionava como um filtro da modernidade, de adequação ao contexto específico português. Por meio das Luzes da “boa razão”, seriam formados homens que pudessem julgar conforme as leis e aplicar a justiça com “bom senso”, de acordo as especificidades e necessidades do Estado português. Além de um importante princípio da cultura jurídica portuguesa do século XVIII, a “boa razão” é um termo-chave para se compreender alguns traços das Luzes em Portugal.

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