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Opinião pública
 

Ana Cristina Araújo,

Universidade de Coimbra,

 

[com a colaboração de Antonio Cesar de Almeida Santos (UFPR) e Cláudio Denipoti (UEL)].

 

texto publicado em 29/05/2019

Isoladamente, os termos opinião e público, bem como a flexão feminina deste último, integram o léxico português desde, pelo menos, o início do século XVIII, como se pode verificar no Vocabulário português e latino editado pelo padre Rafael Bluteau. O termo opinião é definido como aquilo “que se entende e se julga de alguma coisa, conforme notícias que se tem, ou é um conceito que formam os homens em matérias não determinadas”. Expressar uma opinião poderia levar a “cruéis contendas”, especialmente em discussões sobre linhagens ou religiões. Ainda conforme Bluteau, opinião seria contrária à razão, pois a primeira estaria fundada no efêmero, “enquanto a razão nunca envelhece” e é constante. Opinião também poderia referir-se à reputação de um indivíduo, onde se diz “quero livrar-me desta opinião que tens de mim” (BLUTEAU, 1720 [T. 6]: 87-88).

Nota-se que o termo opinião era utilizado, em Portugal, no século XVIII, para exprimir asserções ou verdades comuns. Contudo, nos círculos eruditos mais permeáveis à filosofia experimental, o mesmo termo, quando equiparado ao conhecimento de senso comum, era tomado como sinônimo de erro, como assinala Bento Feijoo, em seu Teatro crítico e universal. Feijoo foi um dos autores mais lidos na Península Ibérica no século XVIII, e contribuiu para vulgarizar este entendimento acerca do termo opinião, tornando-o equivalente a “erro comum” (apud BARRIENTOS, 2004: 51-52). À medida que o século XVIII avançou, os filósofos das Luzes passaram a considerar que a opinião esclarecida garantiria a pluralidade e a intencionalidade crítica dos juízos proferidos em benefício da sociedade. Assim, a crítica filosófica empresta um estatuto elevado ao julgamento virtuoso e ao juízo antitético. De acordo com esta dupla acepção, o substantivo opinião acaba por “dignificar” o direito à “originalidade das ideias”, contra a assunção acrítica de teses, doutrinas e argumentos de autoridade (cf. VERDELHO, 1981: 136-137). Ao nomear e ao substantivar a matéria do pensamento, a opinião, mediada pela crítica da razão, compromete a existência de verdades pretensamente intemporais e eternas. Com isto, o reino da opinião contrapõe-se ao reino fechado da evidência e ao reino difuso do senso comum, contribuindo, simultaneamente, para criar valores alternativos no interior de espaços culturais em que impera a força da tradição e o poder do dogma.

Conforme a essa valorização do termo, a terceira edição do Dicionário de Língua Portuguesa de Antonio de Morais Silva, publicada em 1823, define opinião como “parecer, ditame, sentimento e juízo que se forma de alguma coisa” e, também, “voto que se dá”. As palavras “parecer” e “voto” surgem como sinônimos de “opinião”. Para Morais Silva, quem emite um parecer conserva o estatuto tradicional de “homem de opinião”, isto é, “bem conceituado, de que se esperam boas ou grandes coisas” (SILVA, 1823, [T. 2]: 323). Estes traços assinalados pelo dicionarista são importantes para explicar a progressiva integração na sociedade portuguesa setecentista de elites culturais dissidentes e, também, para se compreender a permeabilidade do Estado ao poder de influência de um número cada vez maior de publicistas, acadêmicos e intelectuais. Como sustenta Javier Fernández Sebastián (2004: 20-21), um dos segredos do sucesso da noção de opinião pública radica no seu “duplo caráter proteico e controverso”.

Em relação a público, Rafael Bluteau indicava que “cidadãos, a gente de qualquer lugar” era equivalente ao substantivo “o público”. O uso do termo como adjetivo aparece em “bem público”, “coisa pública, sabida de todos”, “fama pública”. Público é o contrário de “particular”, e “aparecer em público” significa apresentar-se diante de muitas pessoas. Ainda para Bluteau, “público” era sinônimo de “comum” (BLUTEAU, 1720, [T. 6]: 817-818), e este último sentido é melhor explicado por Morais Silva, que indica que o “comum” significa ser “do uso de todos”; as ruas de uma cidade, por exemplo. No mais, as outras acepções do termo mantêm-se, mostrando que não ocorreram mudanças nos significados da palavra público durante o século XVIII (SILVA, 1823, [T. 2]: 488-489).

Não obstante a ausência do sintagma “opinião pública” nos dicionários de Rafael Bluteau (8 tomos, entre 1712 e 1721, e dois suplementos, 1727 e 1728) e de Antonio de Morais Silva (nas quatro edições publicadas entre 1789 e 1831), é possível identificarmos a sua presença no ambiente letrado luso-brasileiro, estando amplamente popularizado pelos porta-vozes das ideias liberais. Conforme José Augusto dos Santos Alves, essa evolução lexical é explícita em textos e periódicos anteriores e posteriores à Revolução Francesa (ver ALVES, 2000). Para José Tengarrinha a opinião pública só encontrou “audiência estável” durante a vigência do regime liberal, destacando que, só com a Revolução Liberal, “começavam a reunir-se duas condições básicas para a formação de correntes de opinião pública: estruturação e desenvolvimento de mecanismos internos de formulação e conceptualização, que conduziram à capacidade de juntar factos dispersos numa visão lógica e coerente; e instrumentos e mecanismos de difusão que, superando os tradicionais círculos restritos, permitiam tornar pública a opinião” (TENGARRINHA, 2006: 18).

Como estamos vendo, os escritores serão os que melhor vão representar o tipo social que encarna a opinião pública, visto dirigirem-se ao público, utilizando, muitas vezes, a crítica de costumes para exprimir as suas opiniões e formar a opinião geral. A noção de público, assim, é fundante: ela expressa um espaço de comunicação, ou melhor, diversos deles, sendo a instância que permite aos assistentes acompanharem uma dada ação.

Um dos traços dominantes da imprensa portuguesa de finais do século XVIII e alvores do século XIX reside na enorme expansão que alcançam os periódicos humorísticos de crítica social. O seu elevado número parece sugerir que a aptidão para a leitura vai ganhando terreno em segmentos restritos da população urbana e que o sucesso de alguns títulos é consentâneo com a emergência de novas sensibilidades e correntes de gosto na sociedade portuguesa, em especial em Lisboa e outras cidades do país (ver TENGARRINHA, 1989: 54).


 

O primeiro sinal de receptividade a este tipo de folha volante é dado pelas Palestras Críticas e Semijocosas, em que se repreendem os costumes e as modas afetadas (Lisboa, 1771) e pelos Ópios que dão os Homens e as Senhoras na Cidade de Lisboa Huns aos Outros, impressos pela primeira vez em 1786. Ao final daquele século, surgem novos e atrativos títulos: O Almocreve das Petas, ou moral disfarçada para correcção das miudezas da vida (Lisboa, 1797-1800), Retorno do Almocreve das Petas (Lisboa, 1797-1798), Café Jocoso (Lisboa, 1797-1798), Comboy de Mentiras, vindo do reino Petista, com a fragata Verdade encuberta por capitania (Lisboa, 1801), O Espreitador do Mundo Novo (Lisboa, 1802), Barco da Carreira dos Tolos (Lisboa, 1803), Piolho Viajante (Lisboa, 1803), Hospital do Mundo (Lisboa, 1804-1805), Divertimento Instrutivo (Lisboa, 1806-1807), Tempo Presente (Lisboa, 1806-1807) e Câmara Óptica, onde as vistas ás avessas mostram o mundo ás direitas (Lisboa, 1807-1811). Com tiragens provavelmente elevadas, muitas destas publicações conheceram sucessivas reimpressões. Estão neste caso, entre outros, O Almocreve das Petas (1817-1819), o Comboy de mentiras (1820), O Espreitador do Mundo Novo (1819), o Barco da Carreira dos Tolos (1820), o Hospital do Mundo (1824) e a Câmara Óptica (1824). As referidas publicações pareciam agradar a várias gerações e a indivíduos de diferentes grupos sociais. Para além deste aspecto, é importante realçar que o notório êxito deste segmento de publicações periódicas, vendidas por subscrição, aponta para a existência de um público fiel e em expansão, com hábitos de leitura distintos da leitura religiosa e escolar. Como sublinha Alvarez Barrientos, reportando-se à Espanha na mesma época, o espírito crítico instalava-se no âmago da vida quotidiana. O leitor anônimo, o público, divertia-se e construía a sua opinião “a partir da incerteza, da dúvida e da sua experiência”. Os novos escritores, ‘os escritores públicos’ propunham, assim, novas vias de reflexão, distintas “dos saberes adquiridos na escola, na universidade e na igreja, e apresentavam-nas de maneira diferente, nem sistemática nem inatacável, mas sob uma perspectiva moderna e actual” (BARRIENTOS, 2004, p. 57).

Através de folhetos jocosos de sátira social e de divertimento, os críticos elegem como campo privilegiado de representação espaços de sociabilidade que convidam à transgressão (cafés, casas de jogo, assembleias, passeio público) e como instrumentos de observação novas e fantásticas máquinas – a lanterna mágica e o aeróstato, por exemplo. Para além disso, destacam comportamentos e pareceres de diferentes atores sociais, concentrando a atenção dos leitores em acontecimentos e em assuntos de interesse geral.

José Daniel Rodrigues da Costa é um dos autores mais celebrados no domínio da crítica social humorística, de acento moralizador, que se publica na época. Responsável por grandes sucessos editoriais, teve a fortuna de ver muitas das suas obras reeditadas. São de sua autoria Os Ópios, O Almocreve das Petas, o Comboy de mentiras, o Espreitador do Mundo Novo, o Barco da Carreira dos Tolos, o Hospital do Mundo e a Câmara Óptica, entre dezenas de títulos que deu ao prelo. Crítico arguto e irreverente, senhor de uma linguagem solta e judiciosa, José Daniel Rodrigues da Costa reflete nos seus textos a permanência de processos literários há muito fixados pelos letrados. O riso que a sua escrita provoca repousa sobre a velha tradição da literatura de cordel (ROCHE, 2000: 32). Recria a cultura da praça pública passando para o papel temas, exemplos, atitudes e valores que causam perplexidade e favorecem comentários desconcertantes.

A percepção repetida do estilo de José Daniel Rodrigues da Costa favorece também a interiorização das regras que presidem à produção e divulgação das suas publicações periódicas (Bourdieu, 1968). Apostando nesse reconhecimento dirige-se, desta forma, aos seus leitores: “Estimados meninos, delicadas meninas, atafulados mancebos, moderníssimas senhoras, respeitáveis velhos, e venerandas velhas, com todos fallo (porque não sei com quem fallo) dando-lhes a saber que por mais que eu pedisse a minha demissão da Assembleia das Petas, para deixar de ser autor dellas, não me tem sido possível conseguilla, antes mil vezes me tenho visto perseguido pela curiosidade de innumeraveis pessoas, que levando muito a mal o meu silencio, tinhão por huma reprehensivel ociosidade o estar eu calado no decurso de dous annos” (COSTA, 1824, Prologo, p. III).


 

Enveredando sistematicamente pela via do burlesco, não rivaliza no plano estético e literário com os árcades mais afamados, mas disputa-lhes audiência. E Bocage, que o satiriza em várias composições poéticas, não ignora que Jozino Leiriense, nome literário do seu abastardado émulo, “Diz coisas de que a plebe não desgosta” (PIMENTA, 1978, p. 14). Desse facto tem clara percepção José Daniel Rodrigues da Costa quando, em resposta aos seus detratores, afirma: “Talvez haja quem me aconselhe que me calle, que deixe viver quem vive, que os outros se trabalhão he para fazerem os seus interesses […] Ora nesta segunda parte se enganão, que para lucrar he que trabalho […] quem trabalha he porque necessita; e certo neste principio, rogo a Vossas mercês que por effeito da sua curiosidade, venhão ser meus assignantes […] tudo se encerra somente em vender o meu trabalho a quem o quizer comprar; e se há nisto caridade, eu he que a faço aos outros” (COSTA, 1824, Prologo, p. VI-VII). Desta forma, correlaciona, como acontece em França, em Inglaterra e na Alemanha, na mesma altura, o mérito e a fama dos autores com os seus êxitos editoriais. Sem receio de errar, afirma peremptoriamente: “As obras d’agora devem ser como o negociante, que tanto tem tanto vale” (Costa, 1824 b, I, p. 8.). No mesmo impulso de afirmação de algo radicalmente novo subverte ainda o sentido da caridade cristã, sobrepondo a beneficência do altruísmo de espírito à esmola material.

A imagem que a Câmara Óptica capta de Lisboa, nos alvores do século XIX, é quase cinematográfica. “A Capital he huma Babylonia, onde estão aparecendo de contínuo extravagantes figuras e succedendo casos os mais exquesitos”, diz o autor do referido periódico (COSTA, 1824, VIII, p. 13). Antes da transferência da família real para o Brasil (1807), a corte já não disputava, como outrora, a atenção dos súditos da realeza de D. Maria I. Para um homem de opinião, ela era, sobretudo, um lugar de “lisonja”, habitado por “ambiciosos génios” que viviam do engano e morriam enganados (COSTA, 1786, p. 7). Na verdade, a curiosidade do publicista orientava-se, sem receio de censura, para outros espaços de maior deriva social. A praça pública, considerada em abstracto, reflectindo a ambiência burguesa e cosmopolita da época, agradava sumamente a um “espreitador” do Mundo Novo. No seio da multidão, os comerciantes, com os seus “prognósticos de brilhantes felicidades”, davam que fazer a caixeiros e guarda-livros, traficavam sonhos, escondiam falcatruas, eram invejados e respeitados (COSTA, 1, Janeiro 1802, p. 11-12). A dois passos dos seus estabelecimentos, animavam-se, com outros tantos fregueses, os botequins e as casas de café, produto recente no mercado e que gerava uma autêntica febre de consumo. “Na confusão de imensas lojas de bebidas”, respeitando a nomenclatura tradicional, “uns letreiros modernos, pintados de prateado e dourado para apetite dos concorrentes” , anunciam o “Café Nacional”, onde se topam “quatro bancas guarnecidas de povo”. Numa disputa-se a guerra e a paz – o episódio da chamada “Guerra das Laranjas” permanece em pano de fundo –, noutra aglomera-se gente para escutar “os famosos pensamentos de três ou quatro poetas que de olhos esbugalhados, acções apaixonadíssimas e trejeitos enfurecidos desenvolvem poesias”(COSTA, 2, Fevereiro de 1802, p. 2), logo a seguir vem a murmuração pública que concentra grande audiência, por fim, a banca onde se lançam cartas de amor e se desfiam histórias de prazeres imorais apresenta-se como uma das mais concorridas. Neste cenário, as falas são públicas e as vozes joviais e quando aparece um homem que “entra sério, bebe sério e paga sério”, desconfia-se que seja o corregedor do bairro (COSTA, 1, Janeiro 1802, p. 2). Em 1802, escreve-se que os indivíduos que frequentam os cafés “tão depressa elevam os franceses como os precipitão; profetisão cousas grandes, de cousas pequenas; enredão a Prússia; concedem um ar da sua graça aos russianos; põe nas nuvens a América Ingleza; dão baldões a Inglaterra e põe a Itália em penitência” (COSTA, 2, fevereiro, 1802, p.3). Agitadores pouco pacatos convivem assim com figuras de respeito, que não guardam sigilo de matérias reservadas e até proibidas, lamenta o crítico e humorista. Em “discretas academias”, alguns contemporâneos, observando o aspecto e o comportamento dos homens de letras, chegam mesmo a imaginar que a poesia é “febre maligna” e fonte de ociosidade (COSTA, 2, fevereiro, 1802, p.17).

Sem desprezar a tentação ficcional que espreita por entre as margens de um discurso ancorado no fluir concreto dos acontecimentos, a posição de José Daniel Rodrigues da Costa, perante o público e perante o mercado de bens culturais, coloca-o na vanguarda da reflexão, em Portugal, sobre o estatuto do escritor público e sobre a função e a utilidade da literatura.

Um exemplo mais contundente do processo de construção de opinião pública através da palavra impressa pode ser visto durante a invasão napoleônica de Portugal. Até à ocupação Francesa (1807-1808) são raras as publicações que assumem, abertamente, posições de sistemática oposição política à monarquia absoluta e que põem em causa as instituições do Estado, havendo notícia de alguns casos rastreados nos processos da Intendência Geral da Polícia e na correspondência diplomática das mais importantes missões estrangeiras em Lisboa (DIAS e DIAS, 1980, pp. 339 e ss). Todavia, o período que antecede a Constituição de Cádiz (1812) funcionou como uma espécie de laboratório do vocabulário liberal português. Só entre 1808 e 1809 vêm a público cerca de três dezenas de periódicos (TENGARRINHA, 1989, p. 60-61), dos quais sobressaem o primeiro diário português, o Diário Lisbonense (1809-1813), o famoso Semanário Patriótico (1808) traduzido do espanhol, a popular Gazeta de Almada ou Telescópio Português (1809-1810) e, entre muitos outros, o Correio da Península (1809-1810), um dos mais importantes periódicos liberais deste período (BARATA, 2004, vol 1, pp. 225-237). Enquanto durou a guerra peninsular (1807-1814), a expansão da imprensa beneficiou da liberdade que os poderes públicos concederam aos redatores de folhetos, jornais, panfletos, caricaturas, folhas volantes e proclamações, na expectativa de que todos esses papéis contribuíssem para unir o povo contra os ocupantes franceses. Esta estratégia de mobilização dos prelos para combater os jacobinos e os exércitos de Napoleão é clarificada por Francisco Soares Franco, redator da Gazeta de Lisboa, órgão oficial da Regência, num célebre artigo intitulado “discurso sobre a utilidade dos papéis públicos na presente guerra”, publicado em Janeiro de 1809 (Gazeta de Lisboa, 1º. Supl. Ao nº 1, 6.01.1809. Cf. BOISVERT, 1982, p. 275 e LOBO, 2002, pp. 78 e ss.). Não surpreende assim que só, em Lisboa, a Imprensa Régia tenha publicado 700 panfletos, entre 1808 e 1811 (VICENTE, 1995, p. 48; D’ ALCOCHETE, 1977, pp.507-515; e NEVES, 2008). Na capital, conspirava-se nas ruas, no passeio público e, especialmente, nos cafés e lojas de bebidas do Rossio e Cais do Sodré. “As esquinas sofocavam de pasquins”, os boatos corriam depressa e os papéis volantes andavam de mão em mão (COSTA, 1812). Do enorme conjunto de opúsculos e periódicos de temática anti-napoleônica então publicados, sobressaem as composições Protecção à Francesa (1807) e Conversação Nocturna das esquinas do Rossio de Lisboa (1812) de José Daniel Rodrigues da Costa. Estes títulos são, talvez, os que melhor ilustram a alegorização do quotidiano e o triunfo da linguagem das coisas banais no discurso de propaganda política. Num registo mais noticioso, a tensão do momento e as dificuldades então vividas pelas populações são igualmente mitigadas pelo riso sardônico do perspicaz fazedor de comédias. Neste processo, a caricatura política, parte integrante da propaganda anti-napoleônica, universaliza a mensagem e alarga indefinidamente as possibilidades de leitura de discursos e imagens que jogam com crenças, símbolos e instituições ancestrais (ARAÚJO, 1993, p. 42). A velocidade com que a informação circula e a intensidade das campanhas de propaganda permitiram forjar imagens e memórias contraditórias que, na pena de José Daniel Rodrigues da Costa, sinalizam bem os efeitos sociais de um tempo de transição e as transformações culturais e políticas que preludiam o ocaso do Antigo Regime em Portugal.

Em resumo, a opinião pública, no contexto das Luzes, deve ser entendida como uma “categoria organizadora do discurso de filósofos, publicistas e homens de letras”, apresentando-se como um “dos mais recorrentes tópicos de enunciação do discurso político oitocentista”, apesar de suas “significações ambíguas e controversas” (ARAÚJO, 2008: s/p). A opinião pública aparece “associada à ideia de que a vontade geral constituía o mais sólido fundamento da sociedade civil”, de maneira tal que o editor da Gazeta Literária (1761-1762), publicada na cidade do Porto, não prescindia de “evocar o superior juízo do público, isto é, dos leitores” (Idem). Nota-se que o público a que se refere o periódico é aquele a quem o homem de letras se dirige, o seu leitor, não ao indivíduo pertencente às camadas populares. Para Ivan Teixeira, além desta distância em relação aos populares, os homens de letras, acreditavam que exibiam uma distância em relação aos leitores e um desinteresse em relação aos poderosos. Porém, na prática, para o exercício de suas atividades dependiam ainda da proteção de um mecenas (ver TEIXEIRA, 1999), ainda que obtenham popularidade, graças aos novos espaços públicos de debate e comunicação de ideias. Ou seja, os homens de letras dão expressão a um novo poder imaginário de caráter coletivo que os suporta, mas que eles não controlam inteiramente. A opinião pública, suportada pelas elites cultas, surge assim como o resultado esclarecido da reflexão efetuada em comum, sobre os fundamentos da ordem social. Nessa ação, mobiliza a atenção de leitores, espectadores e atores sociais diversos.

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