Disciplina (militar)
Francis Albert Cotta
Universidade do Estado de Minas Gerais
Investigador no Grupo Cultura e Educação nos Impérios Ibéricos (CEIbero) e no Centro de Estudos da Presença Africana no Mundo Moderno - UFMG
Publicado em 06/02/2020
Em 1762, por indicação da Inglaterra e sob a égide do futuro Marquês de Pombal, aportou em Portugal o oficial prussiano Friedrich Wilhelm Ernst (1724-1777), Conde Reinante de Schaumburg-Lippe. Ernst era neto de George I da Grã-Bretanha e nasceu em Londres. Ainda jovem, com apenas 24 anos, após a morte do seu pai, o Conde Albrecht Wolfgang, assumiu o condado de Schaumburg-Lippe, estado independente do Sacro Império Romano-Germânico no Baixo Reno-Vestfália. Militar erudito, estudou em Genebra, Leiden e Montpellier. Em Berlim, frequentou a corte de Frederico, o Grande, e estabeleceu contatos com Voltaire. O Conde de Lippe possuía vasta experiência militar, que incluía campanhas como a Guerra de Sucessão Austríaca (1740-1748) e a Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Teórico militar influente, era um entusiasta da guerra defensiva e da centralidade da disciplina militar (BRITO, 2018, 2011; COTTA, 2004, 2012, 2019; HAGEN, 2012; SALES, 1936; SELVAGEM, 1931).
A presença do Conde de Lippe, de vários oficiais ingleses, suíços, austríacos e alemães e de uma força militar britânica composta por aproximadamente 7.000 soldados em Portugal se deu em decorrência dos desdobramentos da Guerra dos Sete Anos em terras lusitanas, com seus reflexos na América portuguesa. As invasões das tropas espanholas ao território português ocorreram devido à recusa de D. José I (1714-1777) em expulsar os navios ingleses de seus portos. Sob o comando do Conde de Lippe travaram-se diversos embates bélicos bem sucedidos, que ficaram conhecidos por Guerra Fantástica (1762-1763). Ao ser nomeado marechal-general do exército luso-britânico, em 10 julho de 1762, para além do comado das tropas, iniciou uma ampla reforma militar, que englobou aspectos técnicos, táticos e estratégicos (BARRENTO, 2006; BRITO, 2011; COSTA, 2010; COTTA, 2004, 2012, 2019). A despeito de suas contribuições em diversas áreas que compõem o universo militar, essas reflexões se concentrarão apenas na disciplina militar.
O Conde de Lippe utilizou manuais militares como instrumentos privilegiados para operacionalizar sua reforma. Eles foram inspirados nos regulamentos de Frederico II, da Prússia. Brito (2018, p. 245), em seu estudo sobre as publicações alemães sobre o Conde de Lippe, constatou que o oficial utilizou o manual impresso em Berlim, em 1750, intitulado Regulamento para a Real Infantaria Prussiana: no qual se contêm as evoluções, o manuseamento e o carregamento, e como o serviço deve ser executado em campanha e na guarnição, bem como todos os oficiais se devem comportar, e quanto deve ser pago em soldos, e quanto descontado, e como deve ser executado o fardamento... (Grifo nosso). O controle e a vigilância do comportamento e dos corpos dos militares eram centrais na pedagogia militar moderna do Conde de Lippe.
Os regulamentos militares portugueses elaborados pelo Conde de Lippe a partir de 1762 foram impressos em Lisboa, na Secretaria do Estado, na Officina de Miguel Rodrigues, impressor do “eminentissimo Cardial Patriarca”, e na Regia Officina Typografica. Eles seriam válidos para todo o Império Português. Com circulação restrita, eram destinados aos oficiais militares, em virtude do sigilo necessário para esse tipo de produção.
Seguindo as orientações do Conde de Lippe, nas décadas seguintes muitos oficiais produziram manuais e orientações em diversas partes do Império Português. Nas primeiras décadas do século XIX, o Major João Crisóstomo do Couto e Melo compilou a legislação militar dispersa e a publicou com o título Repertório das Ordens-do-Dia dadas ao Exército Portuguez (1830). O Repertório abarcou o período compreendido entre 1708 e 1830 e contemplava artigos da legislação pátria, extraídos das Ordenações do Reino, cartas de lei, provisões, regimentos, programáticas, estatutos, alvarás, decretos, regulamentos, cartas régias, resoluções, portarias e avisos relacionados ao Estado Militar.
Como indicado acima, dentre os diversos assuntos atinentes ao corpo militar, sobressaíam questões relativas aos comportamentos dos sujeitos alistados. Assim, interessa-nos buscar os significados atribuídos à disciplina militar nas fontes coevas do século XVIII. Para Antonio de Moraes Silva (1789, t.1. p. 441),
Disciplina - ensino, educação. [...] § Arte liberal, ciência. § Disciplina Militar - as regras da arte da guerra, e os preceitos que devem guardar os soldados, na obediência aos chefes, nas investidas, no bater [...] § Instrumento de pernas, com que se açoita. § Tomar disciplina, açoitar-se com ella. § Dar disciplina, açoitar por castigo.
O termo é polissêmico, mas no presente estudo, a disciplina militar será analisada a partir de duas dimensões: a primeira trata de aspectos ligados à arte da guerra, portanto, de conhecimentos técnicos, táticos e estratégicos relativos ao ofício militar e seu emprego no sentido prático; a segunda dimensão está relacionada aos preceitos, obediência e subordinação do soldado, com seus respectivos dispositivos de penalização por condutas não desejáveis ao leal vassalo militar.
O Conde de Lippe, por sua formação intelectual e experiência na arte da guerra, acreditava no valor dos livros. Ele cedeu para Portugal 253 títulos, provenientes de sua biblioteca em Bückburg. Para ele, a disciplina militar seria facilitada pela instalação de bibliotecas militares em cada guarnição e, para tal, indicava um rol de livros e os procedimentos a serem realizados para empréstimo e guarda dos exemplares. Além das recomendações, instruções e regulamentos, que podem ser identificados em sua vasta produção - impressa e manuscrita -, Lippe indicou diversas obras militares escritas em outros idiomas e que poderiam ser traduzidas para o português (LIPPE, 1762, 1763, 1764, 1767, 1778).
Ele também valorizava os exercícios práticos, pois somente assim seria possível manter as tropas em condições de emprego operacional. Dessa forma, era necessária a regularidade dos treinamentos nos campos de instrução. As novas diretrizes estavam inseridas nas ordens-do-dia, nos regulamentos, ordenanças e instruções. As ordens-do-dia tinham um caráter direto e eram recomendações expedidas pelas autoridades militares, de acordo com as necessidades do momento, sobre questões relacionadas à disciplina militar, no sentido de fazer cumprir as leis, regulamentos e instruções, bem como orientar aspectos ligados à disciplina militar.
De acordo com o Repertório das Ordens-do-dia dadas ao Exercito Portuguez (1708-1830), a disciplina militar é a:
Instrução de um Côrpo militar: nas Leis e Regulamentos concernentes às Tropas. Emprega-se a palavra Disciplina para exprimir o sistema das disposições destinadas a manter entre elas, a todos os respeitos, a obediência e bôa ordem; das quaes os Artigos de Guerra constituem a parte mais importante. Consegue-se pela educação dos seos individuos, e pela repressão das faltas deles (MELO, 1830, p. 87, Grifo nosso).
Nota-se que a disciplina militar envolvia a complexa relação entre instrução e educação. Primeiro era necessário ensinar as leis e regulamentos, nos quais estavam definidos os comportamentos desejados. Na sequência, era preciso vigiar os comportamentos e, por fim, punir os transgressores da ordem estabelecida. A ordem, de acordo com Raphael Bluteau (1720, p. 103 e 105), era a:
Disposição, assento, ou colocação das cousas no lugar, que lhes convem [...] também se chama certa cortezia militar, usada nos Exercitos, Esquadroens, & alojamentos [...] tem regras, & leis declaradas [...]
De acordo com Russel-Wood (2012, p. 22), nesse contexto do Antigo Regime, a “boa ordem” está relacionada ao comportamento aceito, ao “código de comportamento” e “representava a personificação da fusão do costume habitual e do uso estabelecido”, gerando um comportamento previsível, o que possibilitava equilíbrio e harmonia.
Os regulamentos, as regras e as leis militares assumiram a centralidade do processo que buscava os comportamentos desejados. Todos os militares eram obrigados a pautar suas ações de acordo com os Artigos de Guerra, os quais estavam inseridos no capítulo XXVI do Regulamento para o Exercicio, e Disciplina, dos Regimentos de Infantaria [...] (LIPPE, 1763) e no capítulo IX do Regulamento para o Exercicio, e Disciplina dos Regimentos de Cavallaria [...] (LIPPE, 1764). De acordo com Brito (2011, 2018), os Artigos de Guerra do Conde de Lippe foram traduzidos do manual prussiano intitulado Verhaltungs-Befehle vor die Officiere des Hochgräflich Schaumburg-Lippischen Leib-Bataillons (1754) (Regras de procedimento para os oficiais do Batalhão de Guarda Pessoal do Excelentíssimo Conde de Schaumburg-Lippe).
As práticas e processos educativos tinham como objetivo a formação do militar obediente, que seriam levados a cabo, entre outras ações, por meio da leitura e explicação dos regulamentos. Após o período de recrutamento, os soldados realizariam o juramento de fidelidade aos estandartes; entretanto, somente poderiam fazê-lo após serem lidos e explicados os Artigos de Guerra. Nos dias de pagamento, novamente a leitura e explicação dos Artigos eram realizadas. De acordo com o Regulamento para o Exercicio, e Disciplina, dos Regimentos de Infantaria (1763):
10 - Acabada a revista, mandará o Capitaõ unir as fileiras, e o Sargento lerá em voz alta, e intelligivel os Artigos da Guerra; os quaes seraõ bem explicados aos soldados novos, para que sejão perfeitamente instruídos das suas obrigaçoens. 11 - Depois que o Sargento acabar de ler, fará o Capitaõ abrir as fileiras e dar pelo Furriel O pagamento aos Soldados; que estiverem presentes [..] (LIPPE, 1763, IX, §§ 10-11. Grifos nosso).
Essas práticas possibilitam compreender, como afirma Galvão (2007, p.14), “a oralidade como mediadora das relações com o escrito e o papel desempenhado pelas redes de socialização”. Aqui, o ouvir, a leitura e a explicação dos Artigos de Guerra pelo sargento, num momento altamente ritualizado (a revista da tropa), se constitui em um evento educativo. Fato que corrobora os argumentos de Thaïs Fonseca (2019b, p. 320), que percebe “a educação dirigida ao ver e ao ouvir como práticas educativas e como instrumentos pedagógicos”.
Os Artigos de Guerra orientavam quanto às condutas desejáveis e às indesejáveis e, posteriormente, serviriam de base para os julgamentos dos transgressores nos Conselhos de Guerra, que eram tribunais militares existentes nos regimentos, com composição variada de acordo com o posto ou graduação do infrator. Nesse momento, apresentava-se a dimensão da disciplina militar como castigo.
Várias penas poderiam ser aplicadas aos militares de acordo com as transgressões ou crimes cometidos. Os Artigos de Guerra, previam que o infrator poderia ser preso, expulso por infâmia, castigado corporalmente de maneira rigorosa, ter uma argola de ferro com corrente presa ao tornozelo, uma corrente, trabalhar em fortificações, receber 50 pancadas de espada de prancha, poderia ser enforcado ou arcabuzado (“punido de morte”).
Cândido Lusitano, em seu Diccionario Poetico (1765, p. 225-226), captou diversas dimensões da disciplina ao adjetivá-la:
Arte liberal, Sciencia, faculdade: Ou Ensino, criação, exercício. = Sabia, prudente, instructiva, áspera, custosa, penosa, acerba, difícil, dificultosa, industriosa, engenhosa, polida, útil, proveitosa, frutuosa, judiosa, perspicaz, sollicita, estudiosa, rígida, rigorosa, severa, grave, jucunda, attractiva, deleitosa, liberal, nobre, ilustre, generosa, honrosa (Grifos nosso).
A disciplina também estava relacionada ao ensino e à educação. De acordo com Silva (1789, t. 1, p. 462), a “Educação é a criação que se faz em alguém, ou se lhe dá, ensino de coisas, que aperfeiçoam o entendimento, ou servem de dirigir a vontade, e também do que respeita do decoro” (grifo nosso). Nota-se que a disciplina militar buscava dirigir, vigiar e controlar a vontade do soldado, lembrando-o de seu lugar na ordem que ocupava. Como esclarece Bluteau (1713, p. 29), o decoro é “o que he digno de qualquer pessoa, & do lugar que tem, & taõ proporcionado com o seu estado, que nem exceda as suás forças, nem seja inferior á sua calidade”. A Ordem-do-dia de 21 de agosto de 1811 tratava do Decoro Militar, afirmando que:
Sem ele não pode existir subordibação no seo auge, da qual depende a Disciplina militar: os Oficiaes não devem familiarizar-se com os Sargentos, nem com os Soldados; e os Sagentos tambem não devem ter familiaridade com os Soldados: a conservação todavia destes limites não exclue a docilidade, que todo o Superior deve empregar para com o seo inferior, desviando toda a espécie de dureza (MELO, 1830, p. 75, grifo do autor).
Nesse sentido, o último Artigo de Guerra prescrevia “Todo o militar deve regular os seus costumes pelas regras da virtude, da candura e da probidade; deve temer a Deus, reverenciar e amar seu Rei e executar exatamente as ordens que lhe forem prescritas” (LIPPE, 1763, Art. XXIX, Cap. XXVI).
O Ensino estava relacionado à “instrução e à educação [...] conselhos, direções, preceitos, máximas de se haver algum negócio prudencial ou moral” (SILVA, 1789, t.1, p. 507). Por sua vez, a Instrução estava relacionada ao “ensino, educação”, mas também era “documento, apontamento, regimento que se dá a alguém para se reger por ele” (SILVA, 1789, t.1, p. 725), como as Instruçoens Geraes relativas a varias partes essenciaes para o Exercito (LIPPE, 1762).
Da análise do léxico coevo à reforma militar do Conde de Lippe e dos desdobramentos das décadas subsequentes, observa-se que a disciplina militar possui duas dimensões: uma focada nas regras técnicas da arte da guerra e a outra nos preceitos de obediência. De acordo com Repertório das Ordens do Dia (1830, p. 14), a Sciencia ou Arte da Guerra é a “arte de paralisar as forças do inimigo: seus elementos são número, rapidez, ordem e valor”. Portanto, a disciplina militar procura formar o militar desejável fornecendo conhecimentos para suas funções, que abrangiam tanto o fazer quanto o ser. A parte técnica fornecia conhecimentos práticos, úteis para o emprego eficiente do soldado; já a parte moral procurava construir o bom cristão e súdito leal, disciplinado e que sabe seu lugar na hierarquia militar e social.
O controle dos corpos e dos comportamentos dos militares extrapolam as normas e leis, pois fazem parte de uma vigilância constante imersa numa dinâmica complexa que vai além da ideia verticalizada de hierarquia. Ela tem uma perspectiva ampliada na qual os superiores controlam os subordinados, os pares se vigiam e os subordinados observam as condutas de seus superiores, uma vez que estes devem ser exemplos de correção de atitudes.
A disciplina militar era obtida pela educação do indivíduo, portanto de natureza moral, para torná-lo um bom vassalo militar, obediente às ordens de seus superiores. Já a instrução é percebida como a parte técnica e a tática da Arte ou Sciencia da Guerra, bem como do conhecimento do seu arcabouço legal.
Tais representações ou dimensões são corroboradas pela interpretação de Thaïs Fonseca (2019a, p. 24) ao constatar que a instrução “se aproxima do processo de aprendizado de conhecimentos práticos que dariam ainda maior sentido à utilidade social dos indivíduos”. Atrela-se a isso a importância da educação e da instrução como mecanismos disciplinares da Modernidade. Como ressalta Álvaro Antunes (2012, p. 51), as ações pedagógicas exemplares, coercivas e corretivas eram dirigidas tanto à alma quanto ao corpo.
A Ordem-do-Dia de 15 de março de 1809, ao tratar da disciplina militar, determinava que “o melhor método de introduzi-la nos Corpos é o exemplo dos seus Oficiais” (MELO, 1830, p. 87). De acordo com a mesma Ordem, ela seria obtida pela “educação dos seos indivíduos, e pela repressão das faltas deles”.
Para além da pedagogia do exemplo, buscava-se, como afirma Antunes (2012, p. 52), uma “tecnologia de autoridade que congregasse a disciplina do corpo e da alma”. Uma vigilância do corpo, engendrada pela normalização e pela repressão, que criavam formas de dirigir as condutas dos vassalos militares, baseados em mecanismos disciplinares.
Na sociedade portuguesa do século XVIII todo vassalo deveria pagar seu Tributo de Sangue ao rei. Homens de toda “qualidade” e “condição”, com raras exceções, estavam inseridos no esforço militar da Coroa, nas tropas regulares, auxiliares e irregulares. Os corpos militares eram formados por “nobres e plebeus”, brancos, mestiços, livres, libertos, populações nativas e, em algumas circunstâncias, por escravos. Dessa forma, em algum momento, em maior ou menor grau de intensidade, a disciplina militar atingiria esses vassalos.
Uma das primeiras ações do Conde de Lippe no processo de institucionalização da disciplina militar foi elaborar, imprimir e colocar em execução as Instruçoens Geraes relativas a varias partes essenciaes do Serviço Diario para o Exercito de S.Magestade Fidelissima (LIPPE, 1762). Nelas a importância do asseio e da limpeza eram centrais. A vigilância baseada no corpo do militar (individualmente) e o castigo pela desobediência buscavam a saúde do corpo militar (estrutura militar tática):
A limpeza deve ser considerada como um objeto essencial para a conservação dos soldados, deve-se cuidar nela por todos os modos possíveis, mandando ver as suas muxilas pelos Sargentos e Cabos de Esquadra; examinar se tem a sua roupa lavada, e concertada; no cazo de terem perdido alguma coiza por descuido, devem ser castigados, e com mais aspereza se a tem vendido. Achando-se-lhes trastes alheios, devem os Capitaens averiguar se foraõ furtados, e havendo suspeita contra elles, serão prezos, e se dará parte ao Major (LIPPE, 1762, Art. IV, § V, Grifos nosso).
A fiscalização e o controle das ações dos soldados eram responsabilidade dos sargentos e cabos-de-esquadras. Por sua vez, esses oficiais inferiores eram examinados pelos capitães e tenentes. Essas atribuições também estavam presentes no Regulamento para o Exercicio, e Disciplina, dos Regimentos de Infantaria dos Exercitos de Sua Magestade Fidelíssima (1763):
Os Capitaens, e Officiaes Sobalternos faraõ huma exacta revista ás suas Companhias, e examináõ se os Soldados vão bem vestidos, penteados, e com todo asseyo; e se as armas, e petrechos estaõ no estado, em que devem estar (LIPPE, 1763, Cap VIII, 5, Grifos nosso). [...] Cuidadosamente se examinará se os Officiaes Inferiores, Soldados e Tambores vão bem vestidos e penteados, e se a roupa branca vay lavada e limpa, e o boldrié branqueado” (LIPPE, 1763, Cap. IX, § 3).
O artigo 19, dos Artigos de Guerra determinava que “todo o soldado que não tiver cuidado nas suas armas, no seu uniforme e em tudo que lhe pertence, que o lançar fora, que o romper ou arruinar de propósito e sem necessidade, será pela primeira e segunda vez preso, porém, a terceira, será punido de morte” (LIPPE, 1763).
No século XVIII a ideia de asseio ou limpeza estava relacionada à polícia. De acordo com Bluteau (1720, t.6, p. 575): “Policia, também se toma pela boa graça nas acções, & gestos do corpo [...] Policia, algumas vezes val o mesmo, que Aceyo, Limpeza, Alinho [...]” (Grifo nosso).
A primeira nota relativa ao terceiro e quarto capítulos do Regulamento para o Exercício e Disciplina dos Regimentos de Infantaria (1763) tratava do “Ensino das Recrutas”. Ela fornece chaves importantes para compreender as dimensões da disciplina militar:
Quando se admitir hum Soldado de Recruta na Companhia, será posto debaixo da tutela de hum Soldado capaz, e bem procedido, para que se ensine, e instrua no methodo de se conservar asseado, e ter seu armamento limpo, e em boa ordem (LIPPE, 1763, § I. Grifo nosso).
O recruta entrava no ambiente castrense pelas mãos de um “Soldado capaz e bem procedido”. Esse militar, em tese, teria incorporado aspectos da disciplina militar, percebida em sua capacidade técnica (instrução) e boa conduta (educação). Portanto, estaria apto a “ensinar” e “instruir” o neófito no caminho que deveria percorrer para se tornar um leal vassalo militar. De acordo com Silva (1789, t.1, p. 441), o disciplinado é “o ensinado, [é aquele] que sabe”. Portanto, é aquele que conhece a norma e os preceitos.
O militar deveria ter cuidado com o seu corpo, com a farda, com os equipamentos e com os armamentos. Ratificando essa visão e, de acordo com o previsto no Regulamento do Conde de Lippe (1763), no preâmbulo do Alvará de 24 de março de 1764, o rei afirmava:
Atendendo ao muito que convêm ao [meu] Real serviço e á conservação, e decencia das minhas Tropas, que os fardamentos delas se achem promptos nos seus devidos tempos; de sorte que naõ faltem ás mesmas Tropas, nem a comodidade, nem o acêio, que constituem huma taõ importante parte da disciplina Militar.
No item 17, o alvará previa o fornecimento de pentes de madeira, “o qual sirva de huma parte para alimpar a cabeça; e da outra parte para concertar o cabelo”. Os dispositivos de controle e asseio do corpo do soldado permaneceram na prática e no arcabouço militar. No início do século XIX ele foi reafirmado por meio da Ordem-do-Dia de 11 de setembro de 1809, que indicava:
O Aceio é absolutamente necessario para conservar a saúde dos soldados; e todo o Oficial é pessoalmente responsável, tanto quanto lhes respeita, porque os soldados, que tem a seo cargo estejão sempre lavados, barbeados, e em fim aceados no corpo, na cabeça nas mãos e nos pés: para este fim é preciso que cada soldado esteja sempre fornecido de sabão; o qual os Oficiaes lhes devem fazer comprar; assim como outros pequenos artigos para o seo aceio e do seo vestido, taes como pentes, escovas etc (MELO, 1830, p. 3).
O asseio dos militares, a conservação e limpeza das fardas, bem como a manutenção dos equipamentos e armamentos eram vistos como aspectos centrais na disciplina militar, numa lógica de controle e vigilância.
Entre outros instrumentos normativos, as instruções e os regulamentos do Conde de Lippe deram a tônica da disciplina militar portuguesa pelo menos em termos formais, do que se seguiu nas décadas posteriores. Em 14 de novembro de 1767, ao retornar a Portugal, o Conde de Lippe afirmava que:
[...] Sua Majestade perseverando na immutavel resolução de que as Leis e Regulamentos Militares, que estabelessem a formatura, Disciplina, administração da justiça, economia, instrucção e exercício dos Regimentos de Infantaria, Cavallaria e Artelharia dos seus Exercitos, se observem com a maior exacção athé os seus minimos detalhes, sem alteração alguma debaixo de qualquer pretexto que se possa ser [...] (LIPPE, 1767c, p. 41) (Grifo nosso).
As diretrizes do Conde de Lippe para a disciplina militar seriam válidas para todo o Império Português. Em virtude dos desdobramentos da Guerra dos Sete Anos no além-mar, especialmente na América portuguesa, em 1767 desembarcou no Rio de Janeiro, sede do vice-reinado, o tenente-general alemão Johann Heinrich Böhm (1708-1783), lugar tenente do Conde de Lippe (COTTA, 2004, p. 152)
Em cada capitania os capitães-generais ou governadores seriam os responsáveis pela disciplina militar. Essa atribuição era desdobrada em uma rede de vigilância, controle e práticas que iniciavam com os coronéis, mestres-de-campo, sargentos-mores e capitães-mores, de acordo com o tipo de corpo militar (regular, auxiliar e irregular). Em partes distantes do Império Português, como a África Oriental, as diretrizes militares do Conde de Lippe também ecoariam.
De forma meticulosa, Rodrigues (2006) e Wagner (2018) investigaram a recepção das ideias do Conde de Lippe em Moçambique e Rios de Sena. Para tanto, estudaram as ações realizadas pelo Tenente-Coronel Vicente Caetano da Maia, que comandou o Regimento de Infantaria de Moçambique entre 1779 e 1788. Rodrigues (2006, p. 80) afirma que a “reforma do exército ocorrida em Portugal em 1763, sob a égide do Conde de Lippe, seria transposta para Moçambique em 1779”.
Com base nas orientações do Conde de Lippe, provavelmente em 1779, o Tenente-Coronel Vicente Maia redigiu o Regulamento do Regimento da Praça de Moçambique (Arquivo Histórico Ultramarino. Moçambique. Cx. 34. Doc. 38, apud RODRIGUES, 2006, p. 80; WAGNER, 2018, p. 6). O regulamento tratava da disciplina militar, abordando aspectos tais como: formaturas, períodos de exercícios, regularidade dos treinamentos, refeições, descanso, silêncio, assistência religiosa, regras e punições, especialmente aquelas ligadas à higiene pessoal e à limpeza dos armamentos e equipamentos (WAGNER, 2018, p. 4; RODRIGUES, 2006, p. 80).
Ana Wagner (2018) retomou o Alvará de 24 de março de 1764, que, como foi mencionado, tratou da estreita relação entre a disciplina militar e o asseio dos soldados e das fardas. Ela destacou que naquela porção oriental do continente africano, ao tratar das fardas, era necessário considerar os condicionantes locais, a conveniência climática, os preços e tipos dos tecidos, os aviamentos, a existência ou não de alfaiates e a periodicidade dos navios portugueses que aportavam naquele território. Sobre aspectos relativos ao asseio dos soldados, apresenta as determinações do Tenente-Coronel Vicente Maia:
Todos os dias ao toque da alvorada, os oficiais e oficiais inferiores, que estiverem comandando as suas companhias, farão levantar os seus soldados, e faze-los vestir, lavar, levantar as camas e arrumá-las, pentear os cabelos [...] (Arquivo Histórico Ultramarino, Moçambique, cx. 34, doc. 38. Carta do Tenente-Coronel Vicente Caetano da Maia e Vasconcelos, sobre os aspectos militares, s/d [1779] apud WAGNER, 2018, p. 6).
Também é possível identificar aspectos relativos à disciplina militar no pedido do Governador-Geral de Moçambique António Manoel de Melo e Castro que, em 1786, solicitou ao Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro, o envio de pentes para os soldados daquela guarnição, além de especialistas para a manutenção dos armamentos (Arquivo Histórico Ultramarino, Moçambique, Cx. 52, Doc. 08, apud WAGNER, 2018, p. 6).
A missão do Tenente-Coronel Vicente Maia era “reorganizar e disciplinar” as tropas de Moçambique de acordo com as reformas de 1763. Ele permaneceu por nove anos naquela parte oriental do continente africano. Rodrigues (2006, p. 83) relata o elogio feito aos militares africanos pelo Governador-Geral, que destacava especialmente o conhecimento do terreno e resistência física que possuíam. Fazia apenas uma objeção ao serviço dos africanos: “sua resistência à sujeição ao trabalho e à disciplina da milícia, o que os levava a desertar” (Grifo nosso). Esses não eram problemas exclusivos da África portuguesa, mas estavam também estavam presentes em todas as partes do Império. Dessa forma, o Regimento de Moçambique nunca atingia o efetivo previsto.
Para resolver essa questão, em 1792 o Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro, que parecia desconhecer aspectos culturais e sociais de Moçambique, considerava a necessidade de completar o regimento com os nativos, pois, para ele:
Os africanos prefeririam, certamente, a disciplina da vida militar à “dureza da escravidão”, pois no exército seriam muito mais bem tratados em sustento, e vestuário, do que [...] debaixo do jugo de particulares (Arquivo Histórico Ultramarino. Moçambique. Cod. 1472, fls. 105v-107 apud RODRIGUES, 2006, p. 86. Grifo nosso).
Passados 40 anos da reforma militar do Conde de Lippe, seu legado continuaria em outras partes do Império Português. No Brasil, em 1802, o Capitão-general da Capitania de São Paulo António Manoel de Mello Castro e Mendonça (1797-1802), que também governaria Moçambique entre 1809-1812, deixou Instruções para seu sucessor na qual afirmava que “o Regimento de Infantaria ainda se acha no pé do Regulamento [do Conde de Lippe ] de 1763” (Instrucções, Cap 6, § 2). Além desta Instrução, Mello e Castro elaborou outras cinco Memórias, entre elas estava a que ressaltou a necessidade dos soldados aprenderem a ler, escrever, fazer operações matemáticas básicas e estudar o catecismo.
O arcabouço da disciplina militar construído pelo Conde de Lippe e seus seguidores, especialmente no que diz respeito à dimensão da educação militar, que buscava o controle do comportamento do soldado por meio de dispositivos penais-disciplinares, das inspecções e revistas permaneceu nos processos formativos dos corpos militares. Suas formalidades foram inseridas em manuais, regulamentos disciplinares, códigos penais e processuais penais militares e nas práticas e processos educativos cotidianos. A disciplina militar, centrada na obediência, no controle dos comportamentos e dos corpos dos soldados teria uma longa duração histórica, ultrapassando os séculos XVIII e XIX, em Portugal e no Brasil.
Enfim, a disciplina militar nos moldes do Conde de Lippe pode ser entendida em duas dimensões: instrução e educação, percebidas neste estudo como relacionadas, respectivamente, às ações de transmissão de conhecimentos técnicos úteis sobre a Sciencia da Guerra e de controle de comportamentos, gestos e vontades dos soldados. Na presente reflexão, optou-se por tratar brevemente dessa última dimensão, apresentando fragmentos que possibilitem pensar a sua amplitude em termos temporais e geográficos, por meio de apropriações da disciplina militar, especialmente a educação, por culturas, pessoas e locais tocados pelas práticas militares do Império Português.