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Pedagogia

Justino Magalhães

Faculdade de Educação - Universidade de Lisboa

(Publicado em 10/06/2025)

Da noção de pedagogia

A pedagogia é “teoria-prática” (cf. Durkheim, 1922, p. 26) de educação. O centro da pedagogia reside na acção pensada, orientada, experimentada, reflectida: acção do agente educativo; acção do sujeito da educação. O termo pedagogo reporta à Antiguidade Clássica e aplicava-se ao tutor que acompanhava (alimentando, conduzindo e fazendo evoluir) a criança, na “viagem-educação” que a ela cabia realizar. Em Émile ou de l’éducation, publicado em 1762, Jean-Jacques Rousseau, centrando-se no educando, sistematizou as principais fases da educação e glosou, actualizou, narrou a relação entre pedagogo e criança. Para Georges Snyders, Rousseau tornou possível a síntese entre a pedagogia tradicional e as novas perspectivas, tomando a educação como «une dialectique complexe de collaboration entre surveillance et liberté, entre nature et société» (Snyders, p. 295).

Desde o século XVIII que a pedagogia constitui teoria-prática, dando resposta à complexidade, às indeterminações, à progressão educativa. Tornou-se tão abrangente quanto educação, nela se destacando, em relação à figura do agente, um conhecimento teórico e prático, a dimensão ética e aspectos de legimidade, fundamentação, capacidade de decisão. No plano prático, a pedagogia passou a abranger também aspectos relativos a ideação, concretização, orientação, avaliação dos resultados educativos.

Na Antiguidade Clássica, a figura do pedagogo correspondia ao aio, por vezes um escravo, escolhido pela entidade paternal para acompanhar a criança ao mestre. Cabia ao mestre ministrar a (in)formação, componente fundamental da educação. Entre os Romanos, Cicero manteve a especificidade do paedagogus, como sinónimo de «pagem, aio, que leva os meninos ao estudo», mas sobrepôs na figura de educator as noções de «aio, pedagogo, mestre, o que educa» (Apud, Fonseca, 1789, p. 510 e p. 235). Senhores do conhecimento e responsáveis pelas disciplinas, mestres, mestras e professores tornaram-se os principais geradores da educação, que foi sendo fortalecida com a componente institucional, acentuada a partir do início da Idade Moderna. Foi, no pedagogo que, primeiramente, foram reconhecidos uma intencionalidade, um saber-fazer, uma experiência e uma prática orientada, que asseguravam a personificação, a coerência e a graduação do percurso (viagem) do educando. Correlativamente e em circunstâncias próprias, tanto o mestre-escola, quanto o normalista e mais especificamente o instrutor e o professor, vieram a assumir dimensões pedagógicas.

Conhecimento teórico e prático, mestres, instituição, experiência formaram as bases da pedagogia moderna, que desde o século XVI foi sistematizada, exercitada e aperfeiçoada em programas, compêndios e guias, com relevo para Ratio Studiorum, da Companhia de Jesus. No decurso do século XVIII, a crise da Escolástica, o Iluminismo e o reformismo escolar fizeram emergir a pedagogia com um estatuto científico e fundante da racionalidade e da normalização educativas. Para final de Oitocentos, com o avanço da psicologia e da sociologia associado à universalização escolar, a pedagogia como ciência e prática da educação, agregativa e nomotética, tornou-se matriz para as ciências da educação. Desde final da Segunda Guerra Mundial que a cultura escrita, a instituição escolar e as organizações internacionais de divulgação e regulação da educação, com destaque para a UNESCO, têm vindo a assegurar o direito à educação, fundamentando e promovendo uma pedagogia antropológica e democrática, através da universalização escolar. Por iniciativa da UNESCO, em 1959, foi assinada a Declaração dos Direitos da Criança, consignando a educação como direito inalienável.


 

Formação do conceito pedagogia

Na Nova Arte de Conceitos, publicada em 1718, seu autor Francisco Leytam Ferreyra assumia que

«Nenhuma outra cousa é (senhores) o conceito mais, que o pensamento, ideia, ou imagem, que o entendimento forma em si mesmo de alguma cousa: § formar conceito de alguma cousa é o próprio, que representá-la no entendimento, conhecendo-a, ou como ela em si é, ou parece, ou se imagina ser». (Ferreyra, 1718, p. 12)

A formação de um conceito envolve uma coisa, um entendimento sobre essa coisa e uma representação, quer seja, como imagem reiterada, quer seja, como «se imagina ser». O humano é referência compósita na unidade antropológica formada por hominização e educação. O Setecentismo trouxe uma substância, uma sistemática e uma representação para a educação, na constituição dos indivíduos e das sociedades. O binómio educação-pedagogo proporcionou uma reificação da educação/ humanização, centrada na acção intencional do pedagogo e na (in)formação do educando. Rousseau, para quem as plantas se moldam pela cultura e os homens pela educação, postulando que «tout ce que nous n’avons pas à nôtre naissance et dont nous avons besoin étant grands nous est donné par l’éducation» (Rousseau, 1969, 83) admitiu que a educação nos vem da natureza, dos homens e das coisas. Decompôs a educação em natural, doméstica, social, confiando esta última ao perceptor, ou melhor ao governador, noções que, em seu entender, especificam a de pedagogo, esperando-se do primeiro uma orientação da criança ou do adolescente e do segundo a combinação entre guiar e instruir.

Immanuel Kant que conhecia bem o pensamento de Rousseau, não apenas no plano pedagógico, pois que lhe contrapôs uma perspectiva optimista sobre a história da humanidade, tomou a educação como sistema antropológico e como arte. Como sistema compreende: 1) os cuidados (tratamento, entretenimento); 2) a disciplina; 3) a instrução; 4) a cultura; como arte corresponde a uma «prática [que] necessita de ser aperfeiçoada por várias gerações» (Kant, 1999, p. 18) e tem parte mecânica e parte raciocinada. Com efeito, «a arte da educação ou pedagogia deve, […] ser raciocinada, se ela deve desenvolver a natureza humana de tal modo que esta possa conseguir o seu destino» (Kant, 1999, p. 21).

Definida a educação como processo intencional, multidimensional, ontológico e tecno-antropológico, nela intervém, também, para além do pedagogo, o mestre-escola, como aquele que antes de tudo desperta a aprendizagem e constrói conhecimento; o instrutor que fomenta o mimetismo, transmite e configura; enfim, o professor que, normalizando e ensinando, se constitui, em qualquer circunstância, como «un révélateur et un compagnon dans la familiarization de l’élève avec les auteurs classiques, qu’il suffisait d’imiter» (Frijhoff, 1999, p. 42)

Na perspectiva de Kant, a pedagogia constitui a ciência-prática da educação, que envolve doutrina, estudo, regulação de uma geração para outra, sendo cultura escolástica ou mecânica, no que respeita à habilidade; didáctica no que respeita à informação; pragmática no que se refere à prudência e tendo em vista a moralidade, no que configura uma cultura moral (p. 35). Discípulo de Kant, cuja cátedra veio a assumir, Herbart, conferindo uma maior atenção à pedagogia, composta por princípios, e por teoria especulativa e aplicada, reduziu o esquema da educação a três dimensões: 1) o governo; 2) o ensino; 3) a disciplina.

Formados na Grécia Clássica, os conceitos de pedagogo (detentor da arte de educar) e de Paideia (educação) estavam presentes em Platão. No entanto, a pedagogia não havia sido tomada como pensamento e estrutura da educação. Também o complexo pedagógico dos Jesuítas constituído por Exercícios Espirituais de Santo Inácio, Constituições Jesuíticas, Ratio Studiorum, doutrinário, programático, orgânico, orientado para a Cidade de Deus que se revelou muroso, de grande rigor e inaplicável de modo uniforme, ao todo da humanidade, não foi caracterizado de imediato como pedagogia Foi no quadro da instituição escolar, que distintas pedagogias emergiram e ganharam propriedade. Com os reformadores dos séculos XVII e XVIII, a escola tornou-se a principal instituição educativa, servindo a humanidade a partir da base. No decurso do século XVIII, em resultado da crise da escolástica, do avanço do método experimental aplicado à ciência e à técnica, e da abertura ao enciclopedismo e à diversidade civilizacional, associadas à centração no humano biológico, histórico, racional, social, a educação emergiu como sistema e racionalidade da acção humana e social. Rousseau estruturou a educação e induziu a reforma da escola, Kant analisou a educação suas composição, evolução, racionalidade e trouxe a instituição escolar para o centro da educação.

Johann Friedrich Herbart tomou a pedagogia como parte da filosofia e da psicologia: a filosofia, nomeadamente através da moral, indica os fins a atingir e os modos de acção (Gockler, 1905, p. 113); a psicologia fornece os meios e assinala os obstáculos. Com base nestes pressupostos e tendo em atenção os princípios e a complexidade subjacente à educação, estruturou um sistema, que substantiva e configura a pedagogia, composto por: a) primeiros princípios ou as ciências auxiliares; b) teoria pedagógica ou a ciência da pedagogia propriamente dita. Nos primeiros princípios ou nas ciências auxiliares, estão incluídas a moral, indicando o objectivo da educação e a psicologia, indicando os meios da educação. A teoria pedagógica ou a ciência da pedagogia propriamente dita abrange: I. A pedagogia especulativa ou puramente psicológica [1. Da educação individual; 2. Meios de instrução; 3. Instituições pedagógicas]; II. A pedagogia aplicada ou a doutrina da educação [1) do governo; 2) do ensino; 3) da disciplina] (apud Gockler, 1905, p. 116).

Em síntese, dando sequência ao pressuposto de que a pedagogia encontra os fundamentos e desenvolve a educabilidade do humano, Herbart apresentou um plano pedagógico progressivo e total, organizado conforme a evolução dos interesses e culminando na educação estética. A pedagogia responde às questões da educabilidade do aluno e da possibilidade de ensino por parte do mestre, por duas vias: a da prática e a da ciência. A história traz a experiência humana e a psicologia estuda as possibilidades, os meios e os limites da educação. Para Herbart, a pedagogia deveria constituir-se como ciência independente, com as suas próprias noções e como centro de investigações especiais, ainda que não devesse ser a única a determinar o objectivo da educação. A pedagogia podia, no entanto, assegurar três objectivos da educação: a) a energia do carácter moral; b) a multiplicidade do interesse equilibrado; c) a conservação da individualidade (Gockler, 1905, p. 162). Conclui Herbart que o educador representa o homem futuro na criança, e a pedagogia deve consignar a unidade do carácter moral da educação, com base em deduções assentes nos princípios da preservação da individualidade, da sujeição à moralidade e do desenvolvimento de uma multiplicidade de interesses. Tais deduções decorrem da experiência, devendo ser depois reunidas num princípio único.

Esse princípio de conhecimento, orientação e acção, constitutivo de um elemento terceiro consubstancial na dialéctica da educação, surge encarnado no pedagogo tal como este foi conceptualizado por João Rosado de Villa-Lobos e Vasconcellos, Professor de Retórica na cidade de Évora que, em 1782, publicou O Perfeito Pedagogo na Arte de Educar a Mocidade. Em que se dão as regras da Polícia, e Urbanidade Christã, conforme os usos, e costumes de Portugal. O rigor intrínseco à unidade deste título, surge aliás controvertido na versão O Perfeito Pedagogo e a Arte de Educar a Mocidade Em que se dão as regras da Polícia, e Urbanidade Christã, conforme os usos, e costumes de Portugal, tal é o enunciado que consta do Catálogo Lusodat – Bases de dados sobre história da ciência, da medicina e da técnica em Portugal e Brasil, do Renascimento até de 1900 (Cf. GHTC).

Em Herbart, como mais tarde com Gabriel Compayré, a pedagogia, enquanto mediação entre aluno e mestre, ou seja, como terceridade (o elemento não dado na dialéctica hegeliana), encontrou um núcleo e um campo de aplicação no institucional escolar: governo, conhecimento, disciplina. Submetido a uma semântica e a uma hermenêutica, no quadro histórico-educativo da humanidade, nos dois últimos séculos, este núcleo sociocultural, humanista, científico, tecnológico, desenvolvimentista, que forma uma teoria-prática da educação, constituiu o transversal e o universal da instituição escolar.

As noções de terceridade e de viagem foram glosadas por António Nóvoa, na conferência Pedagogia: a terceira margem do rio, que proferiu na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em 20 de maio de 2011 e na qual se referiu à viagem pedagógica dos últimos 100 anos, detendo-se nas 3 paragens a que correspondem «os lugares mais simbólicos do debate: o conhecimento, a autoridade e o trabalho» (Nóvoa, 2011, p. 5).


 

Do estatuto da pedagogia

Nos debates sobre pedagogia, há questões relativas: ao estatuto de ciência, conciliando as dimensões teórica, teórico-prática, praxeológica; à evolução e inserção no campo das ciências da educação; à própria escrita pedagógica. Mas, a par da interdependência com a noção de pedagogo, o conceito de pedagogia não tem deixado de estar também associado à relação entre a profissão docente e as concepções de ensino.

Desde final de Setecentos, com os estudos e os ensinamentos de Kant sobre pedagogia, que a formação de docentes se tornou tema central, no ensejo de uma normalização escolar, a partir da docência. Ao tempo em que, em França, no quadro da Convenção, foram implementadas as primeiras Escolas Normalistas, houve Estados Alemães onde foram surgindo seminários de formação para a docência. Em 1808, Herbart, após a transferência do filósofo Krug para Leipsig, assumiu, em Königsberg, a cadeira que havia sido fundada por Kant. Desde 1809 que leccionou o curso de pedagogia, e notando a afluência de estudantes a Yverdun, onde também havia um seminário de formação docente, enviou ao Curador da sua Universidade a seguinte carta (apud Gockler, 1995, p. 75), na qual insistia na observação pedagógica:

 

La pédagogie veut être non seulement enseignée, mais aussi démontrée et exercée; c’est pourquoi j’avais déjà depuis longtemps formé le projet de donner moi-même l’enseignement tous les jours une heure à un petit nombre d’enfants choisis, en présence de quelques jeunes gens familiers avec ma théorie pédagogique, et qui peu à peu essaieraient sous mes yeux de continuer eux-mêmes l’enseignement que j’aurais commencé.

 

Uma vez obtida a concordância do curador, Herbart elaborou o plano de um seminário pedagógico. Desde o século XVII que tinham sido ensaiados seminários universitários – pro-paedagogia. Alguns evoluíram depois para escolas normais – Paedagogium. Kant reclamava que, antes que se tornassem escolas normais, aquelas escolas deveriam ser escolas de experiência, pois que a educação deveria assentar em princípios e não ser exclusivamente racional, sem algum grau de mecânica. Em 1809, Friedrich Heinrich Christian Schwarz, teólogo e pedagogo, fundara um seminário pedagógico-filosófico na universidade de Heidelberg. Em 1814, Herbart elaborou um plano para a fundação de um Paedagogium para classes médias de ginásio e para a escola primária superior. Contrariamente a Pestalozzi, que tentou encontrar um método intuitivo para o ensino popular (graças à aliança entre mão, coração e razão), Herbart valorizava a sistematização racional e pretendia tornar científicas as hipóteses de Johann Heinrich Pestalozzi, centradas na intuição. Assim, a tensão entre pedagogos passava para os mestres-escola, os normalistas e enfim para os professores, prolongando-se, sem solução, a tensão entre o ensino verbalista (sem experimentação), e o ensino por compreensão, apoiado na experiência e na acção dos alunos.

Estavam deste modo lançadas as questões do método e do currículo, no âmbito do saber pedagógico, que combina os conhecimentos teórico, prático, praxeológico. Conhecimento, autoridade, trabalho, por parte do professor e do educando-aluno, são dimensões constitutivas da pedagogia no decurso de Oitocentos a que, desde as primeiras décadas do século XX, a Educação Nova conferiu cientificidade e institucionalidade. Como advertiu Daniel Hameline, foi mediando o saber artesanal docente que a pedagogia evoluiu para uma ‘teoria-prática’ da docência, incidindo sobre «a percepção própria daquilo que o docente fabrica e o resultado do que acontece no processo de ensino» (apud Franco e Pimenta, 2007, p. 252).

Hameline denomina de pedagogia o empenho pessoal do docente em construir para si uma teoria-prática, centrada nos alunos. Levando em atenção este princípio, não atribuía à pedagogia por objectivos o estatuto de pedagogia, pois que a refere como «tecnologia das atividades educativas (…) que reagrupa, num conjunto racional, uma panóplia de meios que permitam obter um produto determinado (aquisição de conhecimentos e competências), otimizando os recursos e as condicionantes mobilizadas por essa produção» (apud Pombo, s/d). Com efeito, resumia Olga Pombo, a chamada Pedagogia por Objetivos constitui um «conjunto de princípios metodológicos mais ou menos precisos e de técnicas pedagógicas mais ou menos rígidas, inspirados em trabalhos de pedagogos norte-americanos dos anos 50 (Tyler e Bloom)» (Pombo, s/d). Tais princípios orientadores tiveram desenvolvimentos posteriores nos Estados Unidos e na Europa.


 

Redução e decomposição da pedagogia

A substância da acção pedagógica é uma (in)formação, cognoscente e técnica, que assume a forma de conteúdo transmitido e adquirido. Em consequência, a estrutura pedagógica surge frequentemente circunscrita à educação-acção e ao núcleo agente/sujeito/conteúdo. Nesse triângulo – que o pedagogo francês Jean Houssaye designou de «triângulo pedagógico» – a tónica reside ora no binómio professor/aluno, ora no binómio aluno/conteúdo, ora na díade professor/conteúdo (Houssaye, 1992).

A pedagogia moderna emergiu nos princípios históricos filosóficos e morais da educabilidade dos indivíduos e das sociedades sistematizados por Kant, e nos postulados retóricos de Rousseau e Pestalozzi. Com Herbart, a pedagogia ganhou sistematicidade em torno da criança e da escola elementar (como método e currículo para uma educação integral). Esta pedagogia sistemática foi posteriormente ampliada por Herbart, para a instrução do ginásio e para a instrução primária superior. Herbart procedeu a uma primeira redução pedagógica (nuclearização), ao introduzir o princípio activo dos interesses associado à psicologia, à sensibilidade estética como progressão curricular, à ética como meta-educação. Através do elemento intelectual, esta redução também correspondia à formação moral e estética do carácter dos indivíduos.

Na segunda metade de Oitocentos, a escolarização, tornada irreversível e progressiva, gerou uma burocracia estruturada e orgânica, normativa e hierarquizada, plasmada nos currículos e nos manuais, divulgada através de periódicos e normalizada pela inspecção escolar. Na transição de Oitocentos e primeiras décadas do século XX, a pedagogia tornou-se disciplina científica ensinável e orientadora da realidade educativa. Era uma ciência teórica e prática, elaborando os próprios conceitos, experimentando, inovando, congregando conhecimentos históricos, científicos, metódicos, técnicos, normativos, administrativos.

No período entre as duas guerras mundiais, a complexidade das sistemáticas pedagógicas e a progressiva especialização dos saberes educativos, teóricos, práticos e experimentais, nos planos da investigação científica e da formação de professores, forçaram à decomposição da pedagogia e à constituição de domínios científicos autónomos, com relevo para a didáctica, a psicologia da educação, a sociologia da educação, a administração escolar. Diversificando-se no plano epistemológico, foram constituídas as ciências da educação, ainda que a pedagogia se haja mantido e tenha evoluído associada à formação de educadores e professores. Enquanto, por um lado, a formação das ciências da educação favorecia a sua inclusão no ensino universitário, por outro lado, foram sendo instituídas as licenciaturas em pedagogia orientadas para a construção/normalização/ profissionalização da docência.

Em face desta evolução, Dermeval Saviani, tomando o processo educativo como critério, admite que a incorporação de aspectos do «acervo teórico que compõe o conhecimento científico em geral dependerá da natureza das questões postas pelo próprio processo educativo» (Dermeval, 2007, p. 250). E, prossegue, esse caminho permitiu chegar a uma ciência da educação propriamente dita, isto é, autónoma e unificada, com estatuto próprio no «sistema das ciências», a pedagogia histórico-crítica.


 

Desenvolvimentos e vicissitudes da pedagogia

A educação reporta a processos (in)formativos, cognitivos, humanos, sociais, institucionais. É substantiva e transformativa, dando sequência a intencionalidades, sentidos/normas/evolução. O conhecimento teórico e prático da educação forma teorias da educação e teorias educativas. Estas últimas constituem representações complexas e sequências de pensamento e acção. Assentam em núcleos de fundamentação, organização, projecção e reportam, fundamentalmente, à pedagogia como teoria-prática da educação. É assim possível, combinando paradigmas e teorias educativas, a constituição de tendências, variantes e correntes pedagógicas. No tratado Correntes Pedagógicas Contemporâneas, elaborado com fins didácticos, Filipe Rocha apresentou uma sistemática composta por dez correntes pedagógicas: pedagogia activa, pedagogia funcional, pedagogia da criatividade, pedagogia lúdica, pedagogia da liberdade, pedagogia personalizada, pedagogia da sociabilidade, pedagogia intuitiva, pedagogia experimental, pedagogia da totalidade (Rocha, 1988).

Outras variações ficam associadas à pedagogia como consubstancialidade e às interdependências subjacentes ao fenómeno educativo como totalidade, sendo o conceito aplicado, em simultâneo e de modo reversivo, à realidade em mudança, ao educador, ao educando. É o que preconiza Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido, nela acentuando que «a tendência do educador-educando como dos educandos-educadores é estabelecerem uma forma autêntica de pensar e actuar. Pensar-se a si mesmos e ao mundo, simultaneamente, sem dicotomizar este pensar da acção» (Freire, 1972, p. 102).

Enfim, seja no complexo herbartiano de conhecimento, disciplina, autoridade, seja no triângulo pedagógico sistematizado por Houssaye (aluno, professor, conteúdo), seja no radical mais universalizável da Educação Nova, constituído por currículo, docente, educando, a pedagogia enquanto teoria-prática-praxeologia reporta, no essencial, à docência (modo de pensar, arte, ciência, técnica, método, norma) e constitui uma terceridade complexa, interactiva, interdependente. Na medida em que a docência resida na pedagogia, esta torna-se, enquanto pensamento e teoria-prática, uma intelecção do agir educativo. Tendo em atenção os próprios alunos, a quem o professor se oferece como exemplo, a reversibilidade pedagógica constitui uma garantia de futuro, ainda que esta noção não deixe de estar sujeita a interpretações, presenças, ausências.

Considerando como objecto o educacional, sua natureza e sua especificidade, e configurando numa totalidade ordenada que chama a si o essencial da interacção professor-aluno, educando-educador, consubstanciando e fundamentando o institucional escolar, a pedagogia pode estar ameaçada no conjunto das ciências da educação e no cotejo com as ciências humanas e as ciências sociais (v. Magalhães, 2022). Com efeito, a pedagogia foi arredada de algumas sistemáticas das Ciências da Educação, muito especificamente da sistemática apresentada por Gaston Mialaret em 1985, em edição patrocinada pela UNESCO (v. Mialaret, 1985). Esta sistemática conferiu centralidade à instituição-educação.

Mas a pedagogia continua a não poder ser ignorada na formação e na acção de professores, como modo de pensar e agir, e como núcleo do institucional escolar. Poder-se-á perguntar se a crise e a desvalorização da docência não traduzem uma sub-representação da pedagogia e se não será a partir da pedagogia que se haverá de restabelecer a docência e a credibilidade da educação e da instituição escolar? Importa não ignorar que permanências, tensões, variações, vicissitudes, indeterminações, inovação, reformismo são a história da pedagogia nos dois últimos séculos, particularmente aquém de meados do século XX. Foi essa vitalidade e essa esperança que procurámos assinalar neste pequeno verbete.


 

Referências bibliográficas

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