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Letrados
 

Antonio Cesar de Almeida Santos

UFPR

Publicado em 17/04/2019. Atualizado em 18/04/19

Comecemos mencionando um certo Miguel Rodrigues, que iniciou sua carreira de editor, impressor e livreiro por volta de 1720, em Lisboa. Em 1727, ao solicitar sua admissão como familiar do Santo Ofício, uma testemunha declarou que ele era “pessoa de bons procedimentos”, que vivia “limpa e abastadamente da sua loja de livros”, que era “rico” e que sabia “ler e escrever” (MARTINS, 2012: 202). A testemunha mostrou-se bastante detalhista, inclusive reconhecendo que, entre outras qualidades, o domínio da leitura e da escrita era algo digno de ser informado. Infelizmente, não se sabe como Miguel Rodrigues adquiriu as habilidades de ler e escrever, se ele usufruiu de uma instrução formal e, se realizou estudos, por quanto tempo o fez. No entanto, ele é um dos muitos sujeitos que transitaram por uma cultura letrada no Portugal do setecentos. Tendo em vista esses sujeitos, pretendemos abordar algumas questões acerca daqueles que eram reconhecidos como “letrados”, o que não era o caso do mencionado Miguel Rodrigues, apesar de suas reconhecidas habilidades. Em linhas gerais, nosso objetivo é o de indicar e discutir qual foi o uso dado ao termo letrado na sociedade portuguesa no século XVIII.

Pode-se dizer que “letrados” eram as pessoas que obtinham o “grau de letras”. Esta definição simples e direta aparece no Tratado jurídico das pessoas honradas. A esta definição, o autor do Tratado acrescentou uma nota explicativa remetendo ao Título 48 do Livro Primeiro das Ordenações Filipinas, o qual dispunha sobre as exigências para o exercício das profissões de advogado e de procurador, nos seguintes termos: “Mandamos que todos os Letrados, que houverem de advogar e procurar em nossos reinos, tenham oito anos de estudo cursados na Universidade de Coimbra em Direito Canônico, ou Cível, ou em ambos” (Código Filipino, 1870: 85-86). O autor do Tratado ainda acrescentou que os letrados, além de gozarem “das prerrogativas das pessoas honradas”, estariam “habilitados para os ofícios para os quais se quer o ter grau de letras” (Tratado, 1851: 110-111).

A propósito, os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, dispunham que os estudantes, sendo aprovados nos exames finais, receberiam cartas que declaravam terem sido formados, o que ampliava suas “liberdades e direitos”. Com a obtenção do “grau de Bacharel corrente”, o formado passava a “poder usar das suas letras”, gozando “de todas as isenções, privilégios e graças que, pelas Ordenações e Leis Extravagantes destes meus Reinos são nelas concedidos aos Bacharéis formados” (Estatutos, Livro 1, 1772: 191-192). A obtenção do grau de bacharel era o início para aqueles que pretendiam seguir a carreira do magistério, para a qual deviam habilitar-se como licenciados ou doutores.

Das informações precedentes, queremos destacar três aspectos: primeiro, que as pessoas identificadas como letrados eram consideradas honradas, ou seja, gozavam de distinção e de prerrogativas inerentes à sua posição; segundo, o termo é utilizado com o mesmo sentido desde, pelo menos, o início do século XVII, ainda que já apareça nas Ordenações Afonsinas (1448) e nas Ordenações Manuelinas (1513), em títulos referentes a cargos da estrutura judiciária do reino. De fato, veremos adiante que os letrados já eram reconhecidos como tais desde o século XIV. As Ordenações não traziam uma definição do termo, embora exista a exigência que os procuradores, identificados como letrados, tenham sido graduados por alguma universidade para serem providos no cargo (Ord. Manuelinas: 234). Duarte Nunes de Leão, em sua compilação da legislação extravagante, registrou, em meados do século XVI, que “os letrados graduados na Universidade de Coimbra” poderiam exercer a função de procuradores “por já terem estudado” os anos necessários para isso (LEÃO, 1569: 51). O terceiro aspecto, por consequência, indica que para o exercício de algumas ocupações era necessária uma formação universitária, com a qual se obtinha o “grau de letras”.

O padre Raphael Bluteau registra que, no início do século XVIII, o termo letrado ainda estava sendo utilizado no âmbito judiciário, informando que “com este título se levantaram os juristas e, particularmente, os advogados; porventura, porque das suas letras todos fiam os seus pleitos”. Mas a palavra também era utilizada para designar um “homem sciente, versado nas letras”, que sabia expressar-se com erudição (BLUTEAU, 1716 [t. 6]: 90). Antônio de Moraes Silva, na primeira edição de seu Dicionário da língua portuguesa, registrou que letrado era um “homem que sabe letras, que teve estudo; de ordinário se entende dos advogados e juristas” (SILVA, 1789 [v. 2]: 17). O termo letrado continuará a ser utilizado para designar advogados e outros sujeitos ligados ao mundo das leis até, pelo menos, a primeira metade do século XIX, como fica evidenciado no Dicionário da língua portuguesa publicado pelo frei José Inácio Roquete, que o fixou em duas acepções: como substantivo, significando “homem de letras; advogado”, e como adjetivo, designando um homem “sábio, douto, que tem letras” (ROQUETE, 1848: 632), conforme já aparecia em Bluteau. Como adjetivo, o termo foi utilizado pelo frei Joaquim do Amor Divino Caneca, em sua “Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria” (c. 1822), nos seguintes termos: “Do que tenho dito, já se deixa ver, que eu não escrevo para os homens letrados; sim para o povo rude, e que não tem aplicação às letras” (apud NEVES, 2011: 165).

Como vimos, o uso do termo letrado como substantivo esteve ligado à área jurídica por um largo período de tempo e, desde pelo menos o início do século XVII, para fazer referência àquele que desempenhava a função de advogado. Mas, ainda que possamos notar uma certa simplificação terminológica no Dicionário de José Inácio Roquete, percebemos que o termo também continuou a designar um “homem de letras”, situação obtida por intermédio do estudo, como assinalou Moraes Silva e mostrou Frei Caneca. Deduz-se, assim, que um letrado é um homem (para nos mantermos fiéis às fontes) que desfrutou de uma educação universitária formal, a qual lhe permite fazer uso de suas “letras” que, dentre outros significados, são referidas como “ciência, saber”, de onde se diz um “homem de muitas letras” (SILVA, 1789 [v. 2]: 16).

Esta situação – ser um homem de letras – também era abonatória para o serviço régio. Em 09 de abril de 1768, por ocasião da instalação da Real Mesa Censória, D. José nomeou os “deputados ordinários” que passariam a integrá-la. Conforme estava previsto na lei de 05 de abril do mesmo ano, que instituía aquele tribunal régio, esses deputados deveriam ser “pessoas de notória literatura, ilibados costumes e conhecida piedade”; os decretos de nomeação explicitavam as qualidades dos escolhidos, na seguinte fórmula: “Tendo em consideração aos merecimentos, letras e conhecido zelo do serviço de Deus e meu, que concorrem nas pessoas dos [ou Mestres ou Doutores] hei por bem nomeá-los Deputados Ordinários da Real Mesa Censória novamente criada” (apud BASTOS, 1983: 71 e 74). Fossem clérigos ou não, infere-se, pelo tratamento dispensado, que os nomeados haviam concluído algum curso universitário, provavelmente Teologia ou Direito.

O estudo das “Humanidades, isto é, Filosofia, Retórica e Poética, História”, compunha as matérias concernentes às “Letras Humanas”, as “belas letras” (SILVA, 1789 [v. 2]: 16). Mas as “letras” também podiam ser entendidas como uma “carreira e profissão das ciências e humanidades” (ROQUETE, 1848: 632). As definições de Bluteau, mais antigas, não fogem ao que esses outros dois dicionaristas registraram, conquanto serem verbetes mais extensos e ricos em exemplos abonatórios (Ver BLUTEAU, 1716 [t. 5]: 89-90).

Ainda que se perceba, nos dicionários, uma generalização do homem letrado como um sujeito detentor de conhecimentos gerais das “humanidades”, é necessário reiterar que o termo, em Portugal, esteve estreitamente associado ao desempenho de atividades ligadas ao campo jurídico. Não era, necessariamente, um “advogado”, o qual, embora pudesse ser reconhecido como um letrado, não tinha esta condição derivada de sua profissão, mas sim de sua formação, como mostram outros termos utilizados para designar pessoas ligadas ao campo do Direito: bacharel e licenciado. Guilherme Pereira das Neves, aliás, registra que, “ao longo da história de Portugal nos tempos modernos, foram os jurisconsultos e os especialistas do Direito, em geral, os que melhor personificaram o tipo social do letrado” (NEVES, 2000: 343). Ainda no que se refere à inserção profissional do letrado, Maria Beatriz Nizza da Silva menciona a existência dos “lugares de letras”, ocupações que “implicavam um grau acadêmico na Universidade de Coimbra e depois uma verdadeira carreira na magistratura” (SILVA, 2005: 165). Deve-se ressaltar que, neste caso, letrado está sendo utilizado como um substantivo.

Outro ponto salientado por Guilherme Pereira das Neves é a vinculação dos letrados ao serviço régio. A presença deles em diferentes âmbitos da administração régia, tanto no reino como nos domínios ultramarinos portugueses, confirma essa relação, e essa proximidade ao poder será responsável por um processo de enobrecimento, tanto de indivíduos como do próprio “tipo social”, implicando na valorização dos próprios saberes detidos por tais sujeitos (NEVES, 2000: 344). Neste aspecto em particular, José Sebastião da Silva Dias, em suas “aulas de História de Cultura Portuguesa”, indica que no processo de consolidação da monarquia portuguesa a presença de letrados “se tornaria cada vez mais necessária, em número e qualidade”. Assim, desde pelo menos o século XIV, “o letrado tem uma importância numérica crescente na administração à medida que os anos avançam e o seu valimento oficial é cada vez mais notório. [...] Pode falar-se, então, expressivamente dos quatros estados do reino, prelados, fidalgos, letrados e vassalos” (apud PEREIRA, 2004: 108-109).

Assim, do que vem sendo exposto, depreende-se que o substantivo letrado, em Portugal, designava geralmente um indivíduo que havia realizado seus estudos em Direito Canônico ou Civil, podendo ocupar algum tipo de cargo na área da magistratura (juiz de fora, ouvidor, corregedor, desembargador), ou advogar, ou prestar serviços na administração régia (alguns secretários e outros oficiais). Ser um letrado, todavia, não era condição necessária para que indivíduos ocupassem altos cargos administrativos e, de outra parte, nem todos os letrados estavam, obrigatoriamente, em postos do serviço régio. As referências a conhecimentos obtidos por intermédio de estudos formais indicam que a condição de letrado estava associada ao domínio de saberes específicos e de outras línguas (o latim, pelo menos). E, como se depreende do Tratado das pessoas honradas, tratava-se de uma posição social desfrutada pelo sujeito, independentemente de sua atividade profissional.

Encaminhando para a conclusão desses comentários acerca deste “tipo social” da sociedade luso-brasileira do Antigo Regime, pensamos que pode ser interessante lançar um rápido olhar para os letrados franceses (lettrés), pois o contraste das duas situações poderá nos auxiliar a perceber melhor o uso que era dado ao termo letrado no contexto português.

Roger Chartier descreveu em seu artigo “O homem de letras” um episódio ocorrido em 1770, em Paris, quando diversos admiradores de Voltaire propuseram erigir uma estátua em sua homenagem. Conforme as recordações de Madame d’Epinay, para subscrever a execução da estátua era necessário ser um “homem de letras”, o que estaria justificado pela inscrição que seria colocada: “a Voltaire ainda em vida, de seus compatriotas letrados” (CHARTIER, 1997: 151). Note-se, nos trechos citados, uma alternância entre os termos letrado e homem de letras, para designar o mesmo “tipo social”. Esta alternância pode ser, porém, apenas resultado da tradução.

A estátua, que afinal foi realizada, “apresenta o escritor nu, sentado, com um rolo antigo numa mão e na outra uma pena”. Para Chartier, a estátua traduz “os valores de uma nova ordem literária e política. Representa perfeitamente as contradições de que enferma a definição e a condição do homem de letras na época das Luzes, entre privilégio e igualdade, proteccão e independência, prudência reformadora e aspiração utópica” (CHARTIER, 1997: 153; nosso destaque).

Voltaire fora encarregado de redigir o verbete “homem de letras” (gens de lettres) para a Enciclopédia. O verbete aparece no volume 7, que foi publicado em 1757. Ele distingue ali o “homem de letras” do especialista, “que cultiva apenas um género de estudos”, acrescentando que “os verdadeiros letrados encontram-se na situação de deslocar os seus passos pelos diversos campos, apesar de não os poderem cultivar todos” (apud CHARTIER, 1997: 119; nosso destaque). Faz-se necessário assinalar que, na tradução do texto de Chartier, aparece a palavra “letrados”, mas, na Enciclopédia, a palavra utilizada por Voltaire é gens de lettres (homem de letras), não lettrés (letrados): “les véritables gens de lettres se mettent en état de porter leurs pas dans ces différens terreins, s'ils ne peuvent les cultiver tous” (Cf. Encyclopédie, 1757 [v. 7]: 599; itálico no original).

Para Chartier, “a definição do homem de letras” que Voltaire apresentava na Enciclopédia era “a de um enciclopedista” (CHARTIER, 1997: 119), e Vicenzo Ferrone, ao descrever “O homem de ciência” do Iluminismo, aponta que d’Alembert fazia uma rigorosa distinção entre “homme de lettres e savant” (cientista); este último não seria um erudito, mas um homem de letras (“gens de lettres”) que se ocupava das ciências exatas (FERRONE, 1997: 174; itálicos no original).

Na edição de 1770 do Dicionário Filosófico, o verbete da Enciclopédia sobre o “homem de letras” (gens de lettres) é reproduzido (na edição de 1764, a entrada não aparecia). Voltaire considerava que o termo correspondia “precisamente” ao sentido que gregos e romanos atribuíam a “gramático”, que “não é apenas um homem versado na gramática propriamente dita, que está na base de todos os conhecimentos, mas um homem que não é estranho à geometria, à filosofia, à história geral e particular, que sobretudo realiza estudos da poesia e da eloquência”, concluindo que aqueles antigos gramáticos eram “o que são, hoje, nossos homens de letras”. O Dicionário Filosófico de Voltaire também traz uma outra entrada (Lettres, gens de lettres ou lettrés), na qual ele estabelece uma correspondência entre “homens de letras” (gens de lettres) e “letrados” (lettrés), considerados como sábios, responsáveis por esclarecer os homens e, por isso, perseguidos em seu tempo, o século XVIII. Essa entrada, em que aparece o termo lettrés, não consta da primeira edição do Dicionário Filosófico, de 1764, como também não aparece na Enciclopédia. Da definição apresentada por Voltaire, entendemos que os letrados, na sua acepção, corresponderiam àqueles homens “scientes”, apontados por Bluteau, quando letrado é utilizado como adjetivo: um homem letrado.

O “homem de letras”, para os franceses do século XVIII, era um indivíduo que havia realizado estudos (ainda que esta não fosse uma condição necessária), que tinha a capacidade de se manifestar sobre diversos assuntos e que participava de conversas nas quais acontecia o debate de ideias; ele era um homem que pensava e expressava seus pontos de vista a uma assistência de iguais. Ele se diferencia singularmente do letrado português que, para ser reconhecido como tal, precisava necessariamente obter um grau universitário, que lhe permitia desempenhar funções ou prestar serviços no âmbito de uma estrutura de governo ou da administração judiciária. O letrado de Voltaire e das Luzes francesas não encontrou “campo” que pudesse cultivar em Portugal. Ao menos, não com essa designação, ainda que houvesse muitos sujeitos dos quais se poderia dizer serem homens “scientes” e “de muitas letras”, empenhados em “esclarecer” seus conterrâneos; a lista de seus nomes não seria pequena: entre outros, figurariam nela Luís Antonio Vernei, Martinho de Mendonça de Pina e Proença, Antonio Nunes Ribeiro Sanches, Matias Aires, Teodoro de Almeida, Antonio Pereira de Figueiredo, Antonio Ribeiro dos Santos, José Seabra da Silva.

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