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Educação / instrução

Thais Nívia de Lima e Fonseca

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UFMG

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(Publicado em 14/10/2019)

 

 

Uma importante produção intelectual, entre os séculos XVII e XVIII, deu destaque às proposições acerca dos métodos de estudos e seu papel no desenvolvimento de ideias sobre as condutas sociais e a educação desejáveis para os diferentes grupos sociais, e influenciaram o processo político de intervenções ocorridas em vários estados europeus na segunda metade do setecentos, tanto em contextos revolucionários quanto reformadores. À educação era dada a missão de “modelar uma nova humanidade” conforme expressão de Condorcet. Nesta perspectiva universalista e ilustrada, a educação seria um instrumento para a organização harmoniosa da sociedade por meio da disseminação de valores e normas de comportamento. Ainda herdeiras das preocupações modernas acerca da construção da civilidade e da formação de um “novo homem”, muitas proposições expressas na produção intelectual, nas leis, nas determinações administrativas, bem como na produção de obras de caráter pedagógico, davam ênfase às questões relacionadas à civilização e à civilidade, alvos últimos dos processos formativos, ou seja, da educação.

Educação e instrução designavam, de maneira geral, o processo de formação dos indivíduos para que se integrassem adequadamente à vida em sociedade, conforme as referências e valores aceitos e legitimados. Nas formulações correntes durante o chamado Antigo Regime, educar e instruir pareciam muitas vezes confundidos um com o outro, ou sobrepondo-se quanto aos seus objetivos. Em sua clássica e fundante obra, a Didactica Magna (1657), o protestante Comenius afirmava que ensinar significava fazer com que a juventude fosse “formada nos estudos”, “educada nos costumes” e “instruída em tudo o que diz respeito à vida presente e futura”, indicando a associação de educação com a ideia de formação voltada para o convívio social. Essas definições, contudo, estavam muito próximas àquelas defendidas por autores católicos, como Jean-Baptiste de La Salle, para quem a educação teria papel fundamental no movimento de combate às religiões reformadas, sobretudo por meio de prescrições morais.

A formação do homem civil, apto à convivência social e íntimo das regras da civilização das boas maneiras também estava no horizonte de autores dos séculos XVII e XVIII, ajudando a definir o que seria a educação e quais os seus propósitos. John Locke, em seu livro Some Thoughts Concerning Education (1692), privilegiava a educação do gentleman, expressando o entendimento presente na sociedade do Antigo Regime de que a educação das camadas populares se daria por meio dos exemplos oferecidos pelas elites. Sendo assim, cuidar da educação destas últimas reverteria no bem de toda a sociedade. Refletindo sobre a natureza da educação e da instrução, Locke entendeu que esta última seria menos importante no processo de formação do indivíduo pois só poderia frutificar em terreno fertilizado pela educação para os bons costumes. Rousseau também destacou a educação como instância formativa, sobretudo ética. Ela seria o fundamento da formação intelectual do indivíduo e poderia ocorrer com o mínimo concurso da instrução.

A presença dessas ideias acerca da educação pode ser parcialmente vislumbrada na produção intelectual portuguesa do século XVIII. Raphael Bluteau, em seu conhecido Vocabulário Portuguez e Latino (1712), define educação como “criação (…) para a direção dos costumes. (…) o que tem cuidado da educação de alguém”, definição que orienta as suas derivações: educar seria “criar” e educado seria “criado, ensinado”. Criação e ensino não se distinguem, pois ensino seria tanto o ato de criar quanto o objeto do ensino. Interessante é observar que ensino também vai ser identificado à formação civilizada, relacionado à cortesia: “é tratamento de homens bem doutrinados, ou por experiência da Corte, & da Cidade, ou por ensino de outros, que nela viveram”. Tal tratamento reforça a percepção de que educação é estreitamente associada à ideia de formação do indivíduo para a vida social, no sentido de incutir nele os valores da boa sociedade.

Mesmo que utilize outros elementos para definir o que seria a instrução, o Vocabulário Portuguez e Latino acaba por aproximar novamente a ideia de formação, ao definir instrução como “a ação de instruir. Instrução dos meninos”, bem como “documentos, ou princípios de doutrina, para conhecimento das ciências assim humanas como divinas, como também para a vida moral.” Mais uma vez a ação e o objeto se definem a partir do mesmo ponto, e a sutil diferença entre educação e instrução parece estar no fato de que a segunda se faria por meio de instrumentos normativos mais precisos, enquanto a primeira estaria orientada por princípios mais gerais.

Importantes autores portugueses abordaram o problema da educação, particularmente preocupados com a boa formação dos súditos e com a construção da civilidade moderna em Portugal. Em suas obras fica clara a influência de alguns clássicos como Locke, Fénelon e Rousseau. Em Apontamentos para a educação de um menino nobre Martinho de Mendonça de Pina e Proença, estava imbuído das concepções de educação inspiradas em John Locke. Suas reflexões colocavam a instrução no campo do desenvolvimento de conhecimentos e de habilidades como alicerces para a educação moral e destinada à construção da civilidade moderna. O fato de seu pensamento ser direcionado à educação das elites coaduna-se com a concepção corrente de educação como exemplo a ser dado pela nobreza.

Em sua conhecida obra Verdadeiro método de estudar, influente na elaboração das reformas pombalinas da educação, Luis Antônio Verney formulou importante crítica sobre a educação exclusivamente como formação moral e ética, postulando que ela deveria ser fundada nos princípios da razão e não da especulação. Interessado numa educação útil para o bem do Estado e da sociedade, Verney reorientava o conceito de educação, fundindo-o ao da instrução. Como ambos concorreriam para a formação de um indivíduo ativo e útil ao desenvolvimento do Estado, a educação de caráter formativo com fundamentos morais teria o mesmo status que a instrução (o ensino de conhecimentos práticos). Focado nos problemas do ensino em Portugal da época, e na formulação de propostas para reorientá-lo, Verney defendida uma educação capaz de formar a população portuguesa de maneira mais eficaz por meio de um ensino mais racional e aplicativo.

Não obstante fosse um crítico do controle eclesiástico sobre a educação, Antonio Nunes Ribeiro Sanches, autor de Cartas sobre a educação da mocidade (1760), tratou do tema procurando conciliar a educação civil à formação cristã dos súditos. Defendendo reformas que ajudassem a transformar as dinâmicas de funcionamento da sociedade portuguesa – ao menos em relação à atuação das elites a serviço do Estado – Ribeiro Sanches privilegiava em suas ideias a educação destes segmentos sem, contudo, romper sensivelmente com as noções já correntes de educação e instrução. Os sentidos atribuídos por ele convergem para as tendências já comentadas, ou seja, de que a educação estivesse relacionada à ideia de formação geral do indivíduo para o convívio social nos quadros culturais cristãos (católicos, neste caso) e que a instrução fosse parte daquela, e estivesse mais próxima da aquisição de conhecimentos e habilidades úteis. Assim, no campo da moral se inscreveria a educação, enquanto os conhecimentos “práticos” seriam o domínio da instrução. Esses conhecimentos seriam, também, o meio pelo qual a formação moral se daria. A menção à ideia de “imitação” indica o entendimento de Ribeiro Sanches da educação também como “exemplo”, sobretudo aquele que deveria ser dado pelas elites às classes subalternas, sempre dispostas a imitar as ações “dos seus maiores” (SANCHES, 1922, p. 109).

Outros autores também produziram obras de reflexão geral sobre a educação, suas características, seus sentidos e seus objetivos, dedicando-se a propor o que julgavam ser as melhores orientações para que, num contexto de possíveis mudanças, de políticas reformadoras, o Estado e, eventualmente a Igreja, atuassem no desenvolvimento da educação mais útil à sociedade. Mas também dedicaram-se a chamar a atenção das famílias e dos mestres para seus papéis neste esforço formativo. Alguns escreveram sobre as práticas possíveis nos quadros dessas concepções de educação e de instrução, compondo obras podem ser genericamente chamadas de “manuais”, voltadas para os pais e mestres, e constituídas de orientações e conteúdos fundamentais para a condução da educação dada às crianças e aos jovens. Com denominações diversas, esses livros geralmente combinavam o catecismo cristão ao método para a aprendizagem das primeiras letras (ler, escrever e contar), regras de civilidade e, em alguns casos, geografia e cronologia, por exemplo.

Entre os livros circulantes em Portugal e seus domínios havia muitas traduções, geralmente de obras francesas, destinadas à educação moral e à instrução sobre as regras de civilidade, como Elementos da Civilidade e da Decência para a instrução da mocidade de ambos os sexos (1788), Método de ser feliz ou catecismo, especialmente para uso da mocidade (1787), o Tesouro de meninas ou diálogos entre uma sabia aia e suas discípulas (1783), e A Escola dos bons costumes, ou reflexões morais e históricas (1786). Esta última, traduzida por D. João de N. Sra. da Porta Siqueira, acrescentava à obra de Jean-Baptiste Blancard um “tratado prático da civilidade portuguesa” de autoria do próprio tradutor. No seu Prólogo, ele enaltece a obra original como uma fonte de exemplos de bons costumes com o intuito de “educar a Mocidade, e de a instruir na honra e na virtude”. Mais uma vez, transparecem nestes livros as noções de educação como formação geral e base para o desenvolvimento da instrução que levaria às crianças e aos jovens os conhecimentos fundamentais para se tornarem bons súditos cristãos.

Um aspecto marcante nos livros publicados em Portugal na segunda metade do século XVIII e primeiros anos do século XIX é a visão de que o acerto e rigor do método seria garantia de obtenção de uma educação bem-sucedida. Ao método estaria associada a clareza das orientações para o desenvolvimento dos processos de ensino da leitura, da escrita, da civilidade e da doutrina, conforme regras estabelecidas distintamente para cada caso e que envolveriam explicações sobre o que, como e por que das coisas. Em certo sentido observa-se o recurso – muitas vezes explicitado pelos autores – à razão como elemento de orientação geral para a boa formulação das regras e para a sua apreensão, ou aprendizado. Se isso estaria ou não diretamente relacionado ao contexto intelectual da época, marcado pela influência do pensamento ilustrado em alguns dos círculos intelectuais e políticos portugueses é difícil precisar sem um estudo mais apurado das obras e de seus autores. Para estes autores, o aprendizado correto das “regras” da boa educação seriam os subsídios para se introduzir a mocidade nas demais ciências, que iriam da leitura e da escrita à ortografia e à geografia. Sobretudo a leitura, “porta por onde o entendimento do homem se habilita, para poder entrar em cada uma das outras ciências especulativas”, conforme se lê em Escolla Nova Christã, e Politica, assinada por D. Leonor Thomasia de Souza e Silva (na verdade, Francisco Luís Ameno), de 1799. O esforço de tentar compreender a elaboração e o emprego das noções de educação e de instrução encontra neste livro um interessante subsídio. Como os demais, a educação apresenta-se como o processo de formação geral do indivíduo para a vida em sociedade mas, para chegar-se a ela, percorre-se o caminho de várias “instruções”, o que sugere os procedimentos utilizados para se construir a distinção entre as duas noções. A instrução é mecanismo de transmissão de conhecimentos, seja a doutrina ou a civilidade, a leitura, a ortografia, a aritmética ou a geografia. O objetivo maior de todos esses conhecimentos é a formação geral e, para isso, é preciso estabelecer regras, normas e dispositivos de aprendizagem, conforme as diferentes “áreas”.

Na Nova Escola de meninos, de Manoel Dias de Souza, de 1784, a educação é ao mesmo tempo base, caminho e objetivo para a formação, para se “cultivar, e formar a mocidade assim como nas ciências, como nos bons costumes e ensinar-lhes a cumprir as obrigações da vida civil, e cristã” (p. 190). Souza tende a separar educação de instrução, atrelando a esta última o ensino de conteúdos e de habilidades, como a leitura, a escrita, a aritmética e a doutrina, sendo esta também um exercício para a leitura. Em separado, ele inclui ao final da obra uma parte intitulada Breve direção para a educação dos meninos, de caráter mais prescritivo, e acrescentando ser o exemplo a melhor forma de educação. Ao final, transparece a tendência do autor, em conformidade com outros de sua época, de entender que é preciso primeiro formar, para depois instruir, e que os conhecimentos advindos da instrução, ou das várias instruções, de nada servirão sem as bases estabelecidas pela boa formação.

No conhecido O Perfeito Pedagogo na arte de educar a mocidade, de João Rosado de Villalobos e Vasconcellos, publicado em 1782, tais concepções estão igualmente presentes, avançando em relação a outros autores quando inclui uma parte mais detalhada para cada uma das artes e das ciências consideradas pelo autor necessárias à boa educação dos indivíduos: a religião revelada, a gramática da língua portuguesa, o estudo do francês, da literatura clássica antiga, da geometria e da lógica (essas duas indicadas como as mais importantes porque necessárias à organização do pensamento), da metafísica, da psicologia, da ética ou filosofia moral, da geografia e da cronologia, da eloquência, poesia, dança, desenho, manejo (trato com os cavalos), florete, caça e música. Vasconcellos constrói seu manual orientado pela ideia de que para se alcançar a boa educação é necessário instruir a mocidade com, pelo menos, todos esses conhecimentos. Dentre os diversos livros deste tipo, O Perfeito Pedagogo aparece como aquele que tenta contemplar a maior diversidade de conhecimentos e os enquadra como os integrantes da instrução, segundo o autor, “bússola” para aparelhar o indivíduo para toda a vida.

O governo de D. José I, sob o comando de Sebastião José de Carvalho e Melo, realizou uma série de reformas de caráter administrativo que atingiram diferentes setores da vida do Reino e de seu império. As reformas, iniciadas em 1759 com a expulsão dos jesuítas do império e fechamento de todas as suas escolas, deram início ao processo de escolarização comandado pelo Estado, atingindo, também os domínios ultramarinos. Foram criadas as aulas régias de primeiras letras, gramática latina, grego e retórica, e instituída a “carreira” do magistério régio nos quadros da administração estatal. Definiram-se salários, formas de ingresso no magistério régio e mecanismos de controle do trabalho dos professores. Outras iniciativas ocorreram com a criação da Aula de Comércio (1759) e do Real Colégio dos Nobres (1761), além da reforma da Universidade de Coimbra (1771-72), todas elas visando à formação mais moderna e eficaz dos segmentos sociais responsáveis pelo governo e pela economia de Portugal e seus domínios. A legislação produzida para a implementação destas reformas nos dá indicativos claros dessas influências, mas também das concepções de educação e de instrução correntes à época, e caras à cultura portuguesa do Antigo Regime. O Alvará Régio de 1759, que expulsou os jesuítas e criou as primeiras aulas régias, apresenta em seu texto algumas das características analisadas aqui, quando se introduz o rol de razões pelas quais a Coroa decidiu-se pelas reformas: “Eu El Rei Faço saber aos que este Alvará virem, que tendo consideração a que da cultura das Ciencias depende a felicidade das Monarquias, conservando-se por meio delas a Religião, e a Justiça na sua pureza, e igualdade” (Alvará, 1759).

As “ciências”, entendidas aqui como conhecimentos, não estão dissociadas da necessidade da formação cristã, e a formação para o bem do Estado seria composta não somente de conhecimentos úteis para a atuação do indivíduo nesta sociedade, mas também para sua melhor adequação à ordem. Para o governo de D. José I os jesuítas teriam falhado nesta missão por aplicarem métodos que não resultavam em conhecimentos e habilidade úteis ao progresso da nação. Por mais que o discurso presente em muitos documentos normativos emanados da Coroa neste processo de reformas indicasse a necessidade de renovação e modernização, faziam-se presentes muitas concepções caras à manutenção de uma ordem monárquica de matriz absolutista, e de retorno a práticas que remontavam ao século XVI. Neste primeiro momento das reformas, marcado pela criação das aulas públicas de gramática latina, grego e retórica, a concepção mais claramente presente na legislação é a da instrução, ligada ao ensino de conhecimentos com finalidades práticas e que pudessem contribuir para a “edificação” dos “fiéis vassalos”. Tal ideia fica também clara em documentos que se seguiram como desdobramento do Alvará de 1759, para que fossem executadas as Instruções constantes dele, como o Edital mandado publicar pelo Diretor Geral dos Estudos, D. Thomaz de Almeida, para realização de concurso para provimento das primeiras cadeiras de gramática latina das reformas, no qual é reforçado o propósito da educação a ser desenvolvida no novo contexto e que guiaria a escolha dos novos mestres: garantir que a “cultura das ciências dos vassalos” fosse “o mais bem fundado estabelecimento para o serviço de Deus, e das Monarquias”.

Atestando a fidelidade àquela concepção de educação como formação geral, e a possibilidade de ser ela combinada a alguma instrução de uso prático, a principal lei de ampliação das reformas, de 6 de novembro de 1772, criou as aulas régias de primeiras letras atribuindo a elas essa função. É bastante evidente a consonância desse texto com as concepções presentes nas demais fontes, coerentes com as ideias presentes no pensamento de alguns dos mais eminentes intelectuais europeus da época e com manuais indicados para a educação das crianças e jovens. Segundo aquela lei, essa educação/formação mais ampla atingiria todas as classes sociais num primeiro momento, mas seria suficiente em seus níveis mais elementares para a população daqueles “empregados nos serviços rústicos, e nas Artes Fabris”, pois responsáveis pelo “sustento dos povos”, a eles bastariam as “instruções dos párocos”. Esta sim, fundamental para garantir aquela educação formativa. Aos demais, conforme suas habilidades, haveria a possibilidade de alguma instrução em língua latina, e o aprofundamento para aqueles “destinados” aos estudos superiores, que fariam “figurar os Homens nos Estados”.

A necessidade da boa formação dos súditos para a “felicidade da Monarquia” estava também no discurso de diferentes ocupantes de postos da administração, sobretudo no Brasil, preocupados com situações que escapavam às suas previsões e ao seu controle. Não são raros os documentos produzidos por estes funcionários, relatando sua perplexidade diante de uma sociedade que se estruturava conforme as circunstâncias, e que contrariava uma noção preconcebida de ordem. Muitos atribuíam tal quadro à numerosa população de origem africana e seus descendentes, “naturalmente” propensa à indisciplina e às insolências, mas também aos portugueses emigrados, principalmente os de origem social mais baixa. Num desses documentos percebe-se a indicação de que, além de controle de natureza policial sobre essa população, fazia-se necessário atentar para sua falta de educação. Em carta de 1805, Basílio Teixeira Cardoso de Sá Vedra Freire, Ouvidor da Comarca do Sabará, Capitania de Minas Gerais, expressava sua indignação com o estado de decadência, miséria e desordens na região. Para ele, as uniões de homens brancos com mulheres negras e mestiças originava uma população de libertos “sem criação, sem meios de alimentar-se, sem costumes e com a louca opinião de que a gente forra não deve trabalhar”. Criticava algumas práticas correntes entre essa população e os escravos, mas também apontava abusos cometidos pelos senhores, que bem poderiam ser responsabilizados por parte desse descontrole, mantendo seus escravos na falta de alimentos, de tratamento de doenças, e na “falta de instruções de Religião, Moral, costumes”. A administração local estaria comprometida devido à má atuação dos funcionários, por sua falta “de conhecimentos, ou de caráter”. Reclamava uma urgente reforma como medida para destruir esses defeitos, primeiramente pela indicação de “homens desinteressados, inteligentes, e em tudo hábeis para executar” tais reformas. (Informação, 1897, pp. 673-683).

As impressões do Ouvidor deixam entrever o entendimento acerca da educação também como estratégia de controle político e social, mas fundada nas mesmas bases que combinavam a instrução religiosa e moral e as regras de comportamento, dos “bons costumes”, independentemente se isso diria respeito às elites ou às classes baixas, incluindo os escravos. Essas diretrizes estão presentes em outros documentos, de natureza administrativa, mas que contemplavam preocupações que iam além disso. Na verdade, depreende-se que a administração das terras de ultramar também implicava em ações civilizadoras resultantes, em parte, de processos educativos, qualquer que fosse a sua natureza. “Era função dos administradores controlar as atividades do clero e observar o cumprimento de suas obrigações, entre as quais a de ensinar aos povos os preceitos da lei que professam, pregar-lhes o evangelho, administrar-lhes os sacramentos e conduzi-los com o zelo, desinteresse, e regular comportamento de um bom e exemplar pastor ao grêmio da igreja, de que são filhos...” (Instrucção, 1844), conforme se lê nas instruções dadas pelo Ministro Martinho de Mello e Castro ao Visconde de Barbacena, Luiz Antonio Furtado de Mendonça, que assumia o governo da Capitania de Minas Gerais, em 1788.

Muito embora de uma maneira geral essas concepções acerca da educação como formação do bom súdito estejam presentes de forma recorrente na documentação oficial, eclesiástica ou secular, também se observa neles o entendimento de que, determinado tipo de formação só seria possível por meio da instrução formalizada e institucionalizada. Tal entendimento estaria a par das concepções ilustradas de educação propugnadas a partir da segunda metade do século XVIII, e relacionadas às reformas empreendidas pela Coroa portuguesa neste período. Essa instrução teria, assim, papel fundamental no pretendido processo de modernização do Estado e de sua economia, o que incluiria, certamente, os domínios ultramarinos.

Percorrer fontes diversas, produzidas em diferentes instâncias e conjunturas, em busca das concepções sobre educação e instrução que elas podem indicar como constituintes do pensamento e das práticas culturais no mundo luso-americano dos séculos XVIII e início do XIX tem o propósito de provocar a discussão sobre a historicidade desses conceitos e a desnaturalização da educação como algo dado, homogêneo e universal. E, ainda, desvincular, quando necessário, educação de escola ou de escolarização, para uma época em que as formas assumidas por elas estavam em muito distantes daquelas que veríamos se desenvolver a partir de meados do século XIX. Essa proposta analítica também aponta para a presença das concepções educacionais correntes em diferentes instâncias institucionais, como o Estado e a Igreja, e nem sempre atreladas a discussões sobre educação institucionalizada, sobretudo a escolar. É o que indica o discurso bem como as propostas e ações das autoridades administrativas no esforço de estabelecer, na América, o estado de ordem social e de obediência e fidelidade à monarquia portuguesa. O fato de que muitos aspectos das concepções sobre educação e instrução tenham vindo do pensamento moderno, forjado a partir do século XVI na Europa, não excluía a presença de elementos que, ao contrário de mudanças, pretendiam a conservação de ideias, normas e comportamentos. Ou que a modernização pretendida por meio de reformas, além de procurarem criar novas instâncias educativas fundadas em pressupostos ilustrados e racionais, deixasse de lado fatias importantes da formação e das práticas culturais predominantes, sobretudo aquelas de matriz religiosa católica.

Livros de catecismo e regras de civilidade, de ensino das primeiras letras e das “ciências” úteis à formação do bom súdito cristão para a monarquia portuguesa faziam par com as obras mais consideradas dos pensadores europeus dos séculos XVII e XVIII, bem como com as leis e determinações régias, e com as impressões e ações administrativas das autoridades coloniais na América. Educação não era, portanto, tema de menor importância e consideração, ocupando as preocupações de pessoas em diferentes posições e funções na sociedade do Antigo Regime, uma vez que tratava-se de ação e resultado de impacto na qualidade dos súditos, e no estabelecimento da melhor ordem para o Estado.

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