top of page
Luzes

Cláudio DeNipoti - UEL

Publicado em 16/01/2023

Perceber o “século das luzes” na tradição erudita luso-brasileira, para além do debate de cunho filosófico tradicional, passa por tentar compreender a capilaridade que o termo assumiu dentre a parcela letrada da população, ou com ambições a uma certa erudição, mas que não estiveram necessariamente no centro dos principais debates filosóficos do período. Passa também pela busca da polissemia do termo, justificando, no mais das vezes, um processo educacional mais do que um método em particular de educação, e assumindo significados que nem sempre seguiam as principais linhas de reflexão do Iluminismo tradicionalmente expressas nos debates franceses. Assim, buscaremos outras aplicações dos termos relacionados ao iluminismo, para além de definições analíticas generalizantes, como a que pensa “uma forma ibérica característica do Iluminismo” como o “triunfo avassalador do empirismo britânico em uma extensão inigualável em outros lugares” (ISRAEL, 2001, p. 529), e no sentido de compreender mais e melhor como os portugueses letrados (ver o verbete respectivo neste glossário) do século XVIII se apropriaram dos termos relacionados ao movimento geral de ideias de oposição geral à escolástica, colocando a razão e o espírito crítico no centro das preocupações, pois, segundo Ana Cristina Araújo, as fontes portuguesas não apontam para uma adoção irrestrita do termo “iluminismo”, um neologismo à época, mas “na linguagem de ‘filósofos’, publicistas e reformadores, as referências, no singular, a ‘Luz’, ‘Luz da razão’, ‘Luz da boa razão’, Luz da experiência, e, no plural, a ‘Luzes’, ou mesmo ‘luzes do século’, predominam largamente. No domínio das expressões verbais, ‘ilustrar’, ‘civilizar’ e ‘iluminar’, adquirem um sentido equivalente” (ARAÚJO, 2003, p. 16).

Os estudos focados em diferentes aspectos da cultura escrita em Portugal do século XVIII – escrita, leitura, censura, comércio e circulação de livros, bibliotecas, etc – têm reforçado essa pluralidade de significados, marcada também pelo “carácter transnacional da cultura europeia no século XVIII” que “deixou marcas profundas em muitos autores portugueses que aderiram às ideias e valores da filosofia das Luzes” (ARAÚJO, 2020, p. 125). Além disso, seguindo o roteiro traçado por Daniel Roche para ir além da identificação mecânica entre “Luzes” e “Revolução”, os historiadores podem reconstruir “a rede das sociedades eruditas e das lojas [maçônicas], [e] cartografando o espaço que lhes corresponde, o historiador pod[e] finalmente sentir a imbricação no movimento de difusão das Luzes, do lícito e do ilícito, a aliança confusa mas real dos saberes e dos poderes” (ROCHE, 1998. p. 36).

Podemos iniciar esta busca de significados nos dicionários do período final do século XVIII e inicial do século seguinte, para contextualizar os termos relacionados às luzes. Luz, na definição de Bluteau, em seu dicionário de 1716, é “qualidade subtilissima, que penetra os corpos diafanos & faz todos os corpos visiveis […]”. Depois de se deter sobre as propriedades físicas da luz, Bluteau afirmava não haver “symbolo mais claro da prosperidade deste mundo”, sendo sempre acompanhada pela sombra, exceto, é claro, deus, que “he luz essencial, sem acidente & luz eterna sem mudança”. Associava, a seguir, a publicação de livros e a descoberta de coisas ocultas (“tirar a luz um crime”) para descrever “[a] luz da razão; Lumen Animi ou Lumen Mentis” a partir de exemplos de Columela e Cícero, sem, porém aprofundar-se, mas falando ainda, mais adiante, de “homem grande a todas as luzes”, ou “luzido a todas as luzes”, como alguém que se fia em “bons autores” (BLUTEAU, 1716, v. 5, p. 215-6). Illustração é “dar luz & noticia mais clara de alguma coisa”, com poucas variações de sentido para “ilustrado”, mas associando “ilustrar” com “fazer ilustre’, de forma mais relativa à retórica do que a qualquer princípio educativo (BLUTEAU, 1713, volume 4, p. 52).

Na versão revisada do livro de Bluteau, publicada por António Morais Silva no fim do século XVIII, luz é a “matéria que emana do sol, da chama, e faz com que vejamos os objectos” (SILVA, 1789, v. 2, p 37). Nesta mesma edição, enquanto “illustração” mantém o mesmo significado da edição original, “ilustrar” significava ainda tornar ilustre, mas “illuminar” assumia um sentido adicional de “illustrar declarando ponto doutrinal, ou verdade, com que o entendimento recebe luz” (SILVA, 1789, vol. 1, p. 694).

Ao buscarmos usos “comuns” dos termos em meio à profusão documental relativa à cultura escrita do período, podemos começar nossas explorações com uma ausência notável. Na documentação da Real Mesa Censória encontramos um grande corpo documental constituído pelos pedidos para a posse, leitura e/ou venda dos livros proibidos nos vários editais daquela instituição, a partir de 1768, acompanhados pelas provisões em que autorizavam ou negavam esses pedidos. Os requerimentos eram redigidos com justificativas que buscavam convencer os censores que os requerentes tinham real necessidade (ou direito nato, em alguns casos de hierarquização social) para ter a licença pedida e o acesso aos livros proibidos (DENIPOTI, FONSECA, 2011). A imensa maioria das justificativas, porém, elencava uma variação qualquer dos termos “instrução” ou “educação” frequentemente em combinação, com primazia daquele primeiro, como foi o caso do médico “aprovado e formado na Und.e de Coimbra”, Luis Pereira, que pedia, em 1776, licença para ter e ler livros proibidos de medicina “para milhor se instruir” (ANTT, Real Mesa Censória, Requerimentos, caixa 113, p. 143) e o de D. Pedro Jozé Augusto Flavio de Faria Lemos, Deão do Rio de Janeiro, que em 1780 pediu a licença para “ler e conservar a historia Eclesiástica de D. Mauer, q se acha retida na Real Meza Censoria e p.q a tem comprado a seu dono Monseur Borel e Comp.a” para sua maior instrução (ANTT, Real Mesa Censória, Requerimentos, caixa 113, p. 217). Mesmo considerando que tais requerimentos aderissem a regras retóricas preestabelecidas, ou a modelos socialmente compartilhados, causa estranheza hoje a absoluta ausência a qualquer referência à ilustração, luzes, ou suas variações, como objetivos dos pedidos.

Os censores, porém, usavam “luzes” como argumento em seus pareceres sobre os livros a serem publicados, principalmente como a “palavra final” da censura que considerava o texto analisado “digno” ou “indigno” se “vir à luz” (TAVARES, 2013. p. 13-14). Deve-se manter em mente o fato dos pareceres serem secretos, lidos somente durante as reuniões dos deputados da Real Mesa Censória, o que dava mais liberdade ao debate.

Um exemplo (dentre muitos outros), foi o debate realizado pelos censores em 1771 sobre dois livros de ortografia portuguesa que inclui diversos usos dos termos em questão (DENIPOTI, 2018). Frei Luiz do Monte Carmelo falou das “luzes incomparaveis, que singularmente possui[a]” João Pinheiro Freire da Cunha, Professor Régio da gramática latina na Corte e autor do Breve Tratado da orthografia que ele analisava (CARMELO, s./d). Outro participante deste debate relativizou as críticas a este autor (e à escrita em geral) afirmando que “cada hum discorre segundo as suas luzes, seguros em suas differentes Regras, e principios, e munido com respeitaveis authoridades” (ANON. 27/06/1771). Frei Francisco de São Bento resumiu a questão ao tentar impor limites ao debate em foco entre os censores, quando se perguntou: “He verd.e q. hoje ha mais luzes. Porem a q.m as devemos se n'ao aos q. escreveraõ contra as doutrinas estabelecidas? E se os nossos maiores impedissem isto, estaria toda a Europa sumergida na mesma ignorancia dos bons estudos em q elles viveraõ? E temos nós já todas as luzes e não podem as artes e as ciencias subir a maior perfeição?”. Temos assim três sentidos diferentes atribuídos ao termo “luzes”, que se associam tanto à educação dos indivíduos quanto ao debate mais amplo sobre o conhecimento em geral (SÃO BENTO, 05/07/1771).

Entrando em outro corpus documental, qual seja, os paratextos editoriais escritos por tradutores portugueses e, particularmente, luso-brasileiros, temos a mesma pluralidade de significados atribuídos às luzes e aos termos a elas relacionados. Podemos começar com José Dias Pereira, vice-reitor do Colégio dos Nobres (reitor, a partir de 1798) (SILVA, 1862. T. 4, p. 306). que “ocupava uma posição intermediária na estrutura de poder pombalina” tradutor de duas obras italianas (publicadas em 1775 e 1781) contra a ideia de feitiçaria, que podem ser entendidas “tanto como o desempenho de uma missão oficial quanto como parte de um processo de domesticação da Inquisição portuguesa, cujo objetivo era acabar com a crença na feitiçaria e dirigir a atuação da Inquisição para crimes políticos e comportamentais dos sacerdotes”(DENIPOTI; PEREIRA, 2014). No prefácio de sua Traducção da defeza de Cecilia Faragó, accusada do crime de feitiçaria : obra útil para desabusar as pesoas preoccupadas da arte magica, e os seus pretendidos effeitos, Dias Pereira associava as “luzes” à difusão do conhecimento em línguas vernáculas como forma de combate à superstição: “As grandes luzes que actualmente illustram a Patria affortunada, não consentem que só os Catholicos da França, e da Italia, leiam na língua materna as verdades […] desta obra” (PEREIRA, 1775). Na sua outra tradução, porém, ele associou o termo aos debates filosóficos sobre e existência de magia, argumentando que os autores italianos aos quais recorre colocaram “em taes luzes o argumento [contra a magia], que se faria escarnecer quem quizesse sustentar o sentimento vulgar” (MAFFEI, 1783, Prefácio).

Outro tradutor a usar o termo “luzes” em um sentido geral de “educação” foi João Rosado de Villalobos e Vasconcelos, professor régio de retórica e autor de um famoso guia educacional do século XVIII (FONSECA, 2009, p. 90; RIPE, 2020) e que entendia as luzes em associação com “pátria”, e espírito nacional: “[Estes conhecimentos] gerao as ideias Patrioticas, criaõ o espirito Nacional em beneficio da utilidade, e honra da Patria, e propagando-se as luzes por todas as partes, vem depois a fermentar-se estes conhecimentos de sorte, que produzem por muitos modos, e meios a felicidade publica de hum Estado” (ELEMENTOS, 1786). Joaquim Antonio Xavier da Costa endossou essa visão em sua dedicatória a Dom João, na tradução que fez do Prospecto politico do estado actual da Europa, de Eberhard August Wilhelm von Zimmermann, quando disse que o regente “se interessa em derramar sobre seus fieis Vassalos aquellas luzes, que mais podem concorrer para a sua constante felicidade”, reiterando uma tópica comum, como veremos abaixo (ZIMMERMANN, 1799). Manoel Jacinto Nogueira da Gama, em seu “discurso do Traductor” do livro Reflexões sobre a metaphysica do calculo infinitesimal, de Lazare Carnot, refletiu sobre os obstáculos colocados pela diversidade das línguas à “communicação das luzes respectivas aos póvos mais, ou menos instruídos de todos os seculos” compreendendo “iluminação” como educação nacional e forma de superação desses obstáculos a medida em que “as nações se illuminarão” (CARNOT. 1798).

A ideia das luzes como acúmulo de conhecimentos ficou também expressa no “Discurso preliminar e critico” do professor régio Joaquim José da Costa e Sá para sua tradução da Arte poética de Horacio, na qual afirmava ter procurado traduzir o texto para os leitores principiantes “e não com outra alguma sinistra intenção de querer privar da gloria, e bem merecido louvor aos Sabios Portuguezes, que me tem precedido neste literario desempenho” (neste caso especificamente, Candido Lusitano, cuja tradução do mesmo texto teve três edições entre 1758 e 1784). Seus predecessores guiaram-no com “suas luzes, e doutrinas em tão ardua, e difficil empreza. […]” (FLACCO, 1794).

No “discurso” citado acima, Nogueira da Gama abordou outro tema recorrente nas atribuições de significado para “luzes”, neste caso associado à figura do monarca ilustrado – um tropo comum nos textos iluministas franceses. Segundo Gama, a ação do príncipe Regente D. João era definida “pelas suas Luzes” que o faziam fundar “systemas” e proteger as “Letras, ás Sciencias, e ás Artes em geral” (CARNOT, 1798). Outro tradutor e editor que frequentemente teceu louvores a D. João foi o frei José Mariano da Conceição Velloso (DENIPOTI, 2013), que traduziu e publicou uma grande quantidade de obras associadas ao esforço editorial do Arco do Cego (HARDEN, 2010). Velloso escreveu, na dedicatória do Tratado sobre o Cañamo, que ele publicou em 1799, que “[a]s luzes de VOSSA ALTEZA REAL, e os desejos que tem o seu Augusto Coração, de tirar essa Monarquia da jazeda da indifferença, da mornidão, e da tepidez, em que tem estado á annos, nos são hum seguro penhor, que sem o encadeamento de muitos, apparecerá no Universo com outra face muito mais brilhante […]” (MARCANDIER, 1799). Martim Francisco Ribeiro de Andrade Machado, irmão de José Bonifácio e tradutor do Manual do mineralogico, de Torbern Bergman (1799), fez coro às vozes de encomio a D. João, definindo o monarca como juiz das “luzes” de todos seus súditos: “Se acontecer não corresponderem minhas fracas luzes, e incapacidade ás vistas de V. ALTEZA REAL, a novidade do assumpto será bastante excusa da má execução, e sofrerei contente a censura, ficando ella compensada com feliz destino de ser esta Obra protegida por V. ALTEZA REAL […]”. Da mesma forma, o Visconde de São Leopoldo, José Feliciano Fernandes Pinheiro, fez um discurso de humildade face ao monarca ilustrado: “Mas se naõ pudéraõ conseguir minhas luzes ver-se á pár de meus desejos, Genios ha mais dignos de desempenhar as vistas, e disposições beneficas de V. ALTEZA REAL, pois quando os Principes protegem as Letras, logo aparecem Sabios.”(CULTURA,1799). No mesmo texto, o tradutor assegurava que o monarca era o principal agente de difusão dessas luzes, visando “as verdadeiras riquezas do Estado”. O Frei José Mariano Vellozo também enfatizava esse papel centralizador ao afirmar que o trono era a fonte da “benigna luz” que inspira os “debuxos” tradutórios e autorais aos quais se dedica, acrescentando outra nuance à ideia das luzes (BARBUT, 1799).

Além dos tradutores, outros agentes da palavra escrita ajudam-nos a visualizar contextualmente os múltiplos significados atribuídos às luzes. Pensamos aqui que esses agentes estavam vinculados entre si através de redes de sociabilidade letrada ou científica manifestas nas universidades, academias e mesmo nas redes de comércio de livros. Vimos, no início deste texto, como os censores abordaram esses significados e podemos agora ampliar este espectro, tomando o caso do livreiro Francisco Rolland, que tinha por hábito prefaciar os muitos livros que editava, tanto como estratégia comercial, como para “criar uma imagem de cooperação e integração completa do editor/livreiro com o Antigo Regime português e suas estruturas de poder” (DENIPOTI, 2017, p. 386). Em função dessa prática (redigir prefácios) e em associação com outras estratégias – a reedição de obras clássicas portuguesas, a tradução sistemática de obras francesas e inglesas com diversas reedições ao longo do final do século XVIII e início do século XIX, Rolland pode ser considerado um dos primeiros “editores” portugueses, no sentido dado ao termo por Roger Chartier como “alguém que atua para além da indicação do seu nome na folha de rosto, agindo diretamente nos processos criativos” (DENIPOTI, 2017, p. 388; CHARTIER, 1998, p.47) seguido, quase concomitantemente pelo frei Mariano Veloso (MENESES, 2015, p. 99). Rolland associava “luzes” ao contexto de conhecimentos acumulados de um autor, pertinente a seu tempo, como foi o caso de seu prefácio à reedição do Naufrágio e lastimoso sucesso da perdição de Manoel de Souza Sepulveda. Poema de Jerônimo Corte Real escrito no século XVI. Segundo Rolland, a “pureza, galanteria e elegancia” da linguagem de Corte Real eram sintomas das “luzes e conhecimentos do Seculo, em que floreceo” (CORTE REAL, 1783, p. vi).

Escrevendo para o “público”, esses tradutores e editores buscavam abordar os sentidos social e culturalmente compartilhado dos termos associados à ilustração como estratégias de aceitação (pela censura, pelo monarca, pelos leitores, etc) e de leitura. Nesta mesma linha de atuação, os escritores dedicados à imprensa periódica também surgem como agentes importantes do mundo da palavra escrita, mesmo considerando que no mundo luso, essa mesma imprensa foi severamente limitada pelas estratégias pombalinas, como foi o caso da Gazeta Litterária em 1761-1762 (ARAÚJO, 1990). Escrevendo em 1788, o articulista da Gazeta de Lisboa incorreu em diversos usos do termo “luzes” significando educação pessoal nas notícias sobre a Prússia e Inglaterra (supostamente traduções de discursos de líderes políticos ou monarcas). Na notícia da morte do infante D. José, neste mesmo ano, o jornal atribuiu a ele “ser hum bem digno successor de sua Augusta Mãi” devido às suas “muitas luzes, alta penetração e grande prudencia” (SEGUNDO Supplemento à Gazeta de Lisboa, n. XXXVII, 13/09/1788). Os indivíduos envolvidos no fenômeno de renascimento da imprensa periódica portuguesa nas primeiras décadas do século XIX também participaram de processos de sociabilidade letrada junto aos tradutores (sendo que, com frequência, ambos os papéis se sobrepunham) e apresentaram usos semelhantes aos termos relacionados à ilustração em suas diversas variantes. José Agostinho de Macedo, frade agostiniano de vida promíscua e escandalosa e polemista que ganhou destaque como crítico da revolução liberal e da proliferação de jornais liberais após 1820 (SOUSA, 2008) foi um desses indivíduos. Em 1818, lançou o jornal O desaprovador, que manteve até 1819, no qual “sob capa de censurar os viciosos hábitos e manias do tempo, ia abrindo largas ensanchas aos costumados vitupérios e mordacíssimas sátiras, com que atacava classes e corporações” (SILVA; BRAGA, 1898, p. 106). Mais tarde, não tendo atingido seu objetivo pessoal de tornar-se famoso como ideólogo do regime absolutista, ele dedicou-se à propaganda do regime. “Esta vocação manifestou-se, particularmente, em três dos muitos periódicos que redigiu: A Tripa Virada (1823), A Besta Esfolada (1828) e O Desengano (1830-1831) (FERREIRA, 2020, p. 216-235).” No segundo número d’O desaprovador, Macedo dedicou todo um editorial para falar do “século das luzes”, dizendo inicialmente que: “A luz he a cousa melhor que ha; ella nos descobre o espetáculo do Universo fazendo-nos, que vem a ser o mesmo, vêr o quadro na Natureza” (O Desapprovador No. 2: Lisboa: Na Impressão de Alcobia. 1818, p. 9). Construindo o pano de fundo para a sátira de costumes, ele continuou manifestando sua gratidão por “me ter feito nascer no seculo das luzes, que assim ouvi sempre chamar este em que existimos, e com effeito he por excelencia o seculo das luzes,” (O Desapprovador No. 2: Lisboa: Na Impressão de Alcobia. 1818, p. 9) e reiterou o sentido das luzes como acúmulo dos conhecimentos em torno “todas as Sciencias, todas as Artes, todas as Letras se tem hido acinte ajuntando de idade em idade, de seculo em seculo para allumiar o presente seculo!”(O Desapprovador No. 2: Lisboa: Na Impressão de Alcobia. 1818, p. 9-10). Chamando em seguida Lisboa de “foco das luzes” iniciadas em Coimbra e outras cidades provinciais, o autor passou a ironizar, a título de catálogo de sintomas do século das luzes, a vida boemia da capital, centrada nos botequins, que parecem “na verdade… [o] Palacio Imperial de Pekim”: “Cada Botequim he hum receptaculo de Filosofos de toda a casta: alli se trata não só da direcção e governo da República (e alli mandariaõ buscar leis Sparta e Athenas, se ainda existissem, e a mesma Roma não mandaria a outra Officina fabricar as doze Taboas, e mais illustrado seria Justiniano se alli quizesse compaginado o seu Codigo,) porém do Galvanismo, da Mistificação, e do Magnetismo animal. Tira-se gaz de huma torrada, e muito mais se tira do Ponche […] porque não ha meio mais facil de progredir nas Sciencias, e de gozar do seculo das luzes, que ser Doutor de orelha, […]” (O Desapprovador No. 2: Lisboa: Na Impressão de Alcobia. 1818, p. 11). Após este introito irônico, o autor seguiu dando exemplos de trabalhos inócuos, desnecessários ou fúteis sendo perseguidos pelos ilustrados de botequim, que ele identificava com os defensores das ideias liberais, mas que se manifestam, na sua pena, sintomáticos da corrupção das ideias centrais das luzes que ele elogiara no início do artigo.

Mais um exemplo do uso da ideia de luzes pode ser encontrado em outro jornal desta época, o Investigador português em Inglaterra, criado em 1811 por iniciativa do embaixador português em Londres, Domingos António de Sousa Coutinho com apoio de seu irmão, D. Rodrigo de Sousa Coutinho (MACHADO, 2011). Como outros periódicos semelhantes à época, o Investigador trazia artigos copiados ou traduzidos de outros jornais, sem muita preocupação em estabelecer a autoria original. Em novembro de 1811 o jornal publicou um tal artigo, intitulado “será a educação necessária, ou avantajosa ás classes inferiores?” Nele, o autor (anônimo) completava a questão argumentando que o trabalho manual obrigatório, tornado uma “tarefa quasi eterna” das “classes inferiores” destruía a “primitiva curiozidade” dos indivíduos e os tornava ineptos “para ser[em] iluminado[s] pelas luzes da sciência” (O INVESTIGADOR - V. 1 (Nov. 1811), p. 21-22). As luzes retomam aqui o seu sentido educacional mais próximo àquele dos iluministas “radicais” (ISRAEL, 2001). No ano seguinte, o jornal transcreveu um “regulamento da liberdade de imprensa” aprovado na Venezuela (recentemente independente da Espanha napoleônica), em que a associação entre as luzes, imprensa e direitos individuais foi tornada explícita: “Persuadida a Secção Legislativa de Caracas de que a Imprensa é o canal mais seguro para communicar as luzes a todos, e que a faculdade individual dos Cidadaons de publicar livremente seos pensamentos, e ideas políticas, he não só um freio contra a arbitrariedade dos que governão, mas taobem hum meio de illustrar os Povos em seus direitos” (O INVESTIGADOR, V. 1 (Jan. 1812), p. 451). Outros sentidos dos termos surgem ao longo do jornal: 1) o de luzes como conhecimentos individuais: “[…] tão respeitado pelas suas virtudes, como pelas suas luzes […]” ((O INVESTIGADOR - V. 1 (Nov. 1811), p. 236); “Era moda, entre aquelles mesmos, que tirarão proveito das suas luzes, e da sua bondade, depreciar o seu merecimento como astrônomo e como homem”;(O INVESTIGADOR - V. 1 (Nov. 1811), p. 145) “Eu submeto ás altas luzes de V.a Ex.a […]”. 2) Luzes como conhecimento acumulado: “Se nos podessemos formar um tribunal, dotado de huma imperturbavel sagacidade na seleção dos instrumentos mais próprios para diffundir as luzes […].”(O INVESTIGADOR - V. 1 (Nov. 1811), p. 332). Anos mais tarde, já sob a direção de José Liberato Freire de Carvalho (MACHADO, 2011), as imagens sobre as luzes persistiam como um tropo consistente. Ao falar sobre a política na Espanha em 1817, o editorialista se perguntava: “de que valem as luzes ou as letras” em debates partidários nos quais predominavam os ataques pessoais (O INVESTIGADOR, 1817, p. 87), e ao falar sobre a “Prussia, Austria e Reino dos Paizes Baixos”, dizia: “[q]uasi todos os governos do continente fizerão tratados de commercio ruinosos com a Inglaterra, e no tempo de sua assignatura bem pouco ou nada se queixaram os povos do mal que esses Tratados lhe faziaõ; sinal que o não conheciaõ, e que as suas luzes não eram como as d’agora,” (O INVESTIGADOR, 1817, p. 96) completando que a riqueza inglesa fora baseada na “ignorância dos povos da Europa” e advogando que isso fosse combatido com “ressurreição e progresso das luzes, […]” (O INVESTIGADOR, 1817, p. 97).

No Correio Brasiliense o tema das luzes também foi recorrente e, desde o primeiro número em 1808, Hipólito da Costa articulou suas ideias em torno das ciências e das luzes, adquiridas ao longo de sua formação e atuação a serviço da coroa (ZAROSKI, 2015) em discursos panfletários de cunho satírico (SILVA, 2010). Segundo ele, ‘O primeiro dever do homem em sociedade he ser util aos membros della; e cada um deve, segundo as suas forças Phisicas, ou Moraes, administrar, em beneficio da mesma, os conhecimentos, ou talentos, que a natureza, a arte ou a educação lhe prestou. O indivíduo, que abrange o bem geral d’uma sociedade, vem a ser o membro mais distincto della: as luzes, que elle espalha, tiram das trevas, ou da illuzão, aquelles, que a ignorancia precipitou no labyrintho da apathia, da inepcia, e do engano” (Correio Braziliense. Junho, 1808, p. 4). Vemos aqui a associação entre a obtenção das luzes através da educação com a ideia de utilidade, ou seja, a capacidade das práticas educativas em “converter os ignorantes à verdade” (TAVARES, 2013, p. 167. Ver também o verbete Util/utilidade, neste Glossário). Embora os exemplos possam ser multiplicados enormemente, citaremos apenas mais um, também de 1808, incluído em uma proclamação convocando os portugueses a reagir à “mais terrível erupção de Barbaros” da Europa, “e isso no tempo das chamadas Luzes!” (Correio Braziliense. Setembro, 1808, p. 328. - itálico no original).

Criticando Hipólito, o Frei Joaquim de Santo Agostinho França Galvão escreveu suas Reflexões sobre o correio brasiliense que “[a] verdade, e o bem dos homens, devem ser os motivos de todas as composições Litterarias. O Escriptor, que se não propõe espalhar sobre os seus similhantes as luzes de huma sã razão, dilatar o Imperio da virtude, e melhorar a condição do homem social, inculcando moderação aos que mandão, e soffrimento aos que obedecem he hum charlatão indigno, que merece o desprezo dos homens justos, e sabios de todos os Seculos, e de todas as Nações” (GALVÃO, 1809, vol 1, p. 3). A crítica ficou mais incisiva quando Galvão rebateu a associação, feita por Hipólito, entre a Inquisição e o descrédito das luzes em Portugal, perguntando-se “Qual tem desacreditado mais este Reino, se a Inquisição, se as suppostas luzes do presente seculo” (GALVÃO, 1809, vol 1, p. 123).

Podemos continuar multiplicando exemplos desses usos na documentação manuscrita e impressa para compor um inventário descritivo, mas cumpre antes problematizar esses usos em consonância com outras definições conceituais da época, lembrando sempre que as sociabilidades letradas que ligavam esses diversos agentes da palavra escrita também os faziam compartilhar um “glossário” gramatical simbólico comum (ou, se preferirmos, o habitus enunciado por Pierre Bourdieu, [1974]). Em primeiro lugar, temos os vários exemplos que associavam as “luzes” ao conjunto de conhecimentos individuais que distinguiam determinados indivíduos, inserindo-os no universo letrado, ou, dito melhor, no universo dos “letrados” portugueses. Definidos fundamentalmente como possuidores de educação universitária formal, particularmente em direito, e (quase sempre) a serviço da coroa, o termo ganhou importância e capital simbólico ao longo dos séculos XVII e XVIII, funcionando como substantivo identitário (o letrado) ou como adjetivo ou advérbio (ver o verbete Letrados, neste Glossário). Fora deste conceito mais estrito, as “luzes” surgiam associadas à ideia mesma de educação ou instrução, binômio comum nos debates sobre a “formação geral do indivíduo para o convívio social nos quadros culturais cristãos (católicos, neste caso) e que a instrução fosse parte daquela, e estivesse mais próxima da aquisição de conhecimentos e habilidades úteis” (ver o verbete Educação / instrução, neste Glossário). Como parte de uma prática educativa realizada em espaços de sociabilidade científica, a difusão das “luzes” se torna um sentido comum dos termos associados à ilustração.

Finalmente, mas não menos importante, estão os sentidos que a historiografia atribuiu à Ilustração e à contra-ilustração (ver MCMAHON, 2002) de busca de conhecimentos por um paradigma definido pela observação sistemática (e metodológica) em oposição ao recurso à autoridade douta (ver o verbete Método, neste Glossário). A associação das “luzes” com o progresso científico verificado em uma enorme gama de disciplinas a partir do século XVII passou a fazer parte do vocabulário geral como um neologismo (palavra criada no século XVIII) comummente aceito. O embate em torno dos significados políticos dessas “luzes” foi, porém, mais acirrado e prenhe de camadas interpretativas, como fica evidente nos exemplos finais citados acima, tirados do início do século XIX português.

bottom of page