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Útil / Utilidade
 

Cláudio DeNipoti  - UEL

publicado em 27/10/2018

(Atualizado em 17/11/2019)

O objetivo deste estudo é atingir uma melhor compreensão sobre os usos linguísticos no período final do século XVIII e início do século XIX no espaço luso-brasileiro. Neste sentido, busca-se aclarar os significados de alguns termos nos contextos em que foram utilizados e a escolha dos termos a serem aclarados se dá pela problematização da forma como tais termos ocorrem na documentação compulsada, buscando efetivamente “criar” problemas historiograficamente válidos para avançar os resultados da investigação. No presente caso, partiu-se de documentos relacionados à história da palavra impressa para investigar em paratextos (prefácios, dedicatórias, etc.) e epitextos (censuras e pareceres)  o que os portugueses (e luso-brasileiros) ilustrados (ou “letrados”) do período compreendiam por útil e utilidade.

Nos estudos sobre o século XVIII em Portugal, é comum a associação do iluminismo lusitano, com o utilitarismo inglês, como um processo que, em geral “denota um conjunto de perspectivas que, de algum modo, fazem da promoção imparcial do bem-estar o único padrão ético para a avaliação de, por exemplo, actos, códigos morais ou práticas e instituições sociais” (GALVÃO, 2013). Este sentido da utilidade do conhecimento e ações de agentes públicos permeia a percepção historiográfica sobre o período sem, contudo, questionar o quanto a ideia de “utilidade” e “útil” em seus usos no passado.

Em termos da incorporação de significados em dicionários, a utilidade foi apresentada por Bluteau, no início do século XVIII, como sinônima de “proveito” ao passo que “útil” era “cousa que serve, que aproveita, que póde servir, ou aproveitar”, e “utilidade pública” era entendida como “bem comum” (BLUTEAU, 1712-1728. vol 8, p. 600.). No “Supplemento”, de 1728, além do proveito, utilidade aparece com significados comerciais, de conveniência, lucro, ganho e interesse … (BLUTEAU, supplemento, parte II, p. 432). Estes sentidos foram pouco alterados na versão que Antônio de Morais e Silva fez do dicionário de Bluteau em fins do século. Para ele, útil era adjetivo que significava ter “algum uso, serviço, prestimo para algum fim”, e utilidade era “Commodo, proveito, serviço que se póde receber da coisa ou pessoa, préstimo, bem”(SILVA, 1789, vol 2, p 502). Estes mesmos significados foram mantidos em dicionários da primeira metade do século XIX, (PINTO, 1832), como no caso do dicionário de Fonseca e Roquete, de 1848, que definiu o adjetivo útil, como “proveitoso, que serve”, e utilidade, como “commodo; proveito; prestimo” (FONSECA, & ROQUETE, 1848, p. 244).

A dicionarização obviamente não dá conta das aplicações linguísticas de útil e utilidade ao longo da segunda metade do século XVIII, em especial com relação àqueles indivíduos diretamente envolvidos com a palavra escrita – particularmente impressa – no Antigo Regime português. Temos ai o contexto para pensar os usos dos termos de acordo com um grupo bastante específico de “agentes” da cultura escrita – indivíduos envolvidos nos diversos processos de produção textual, edição, comércio, censura e leitura de livros. É importante frisar que não se trata de perseguir as origens da tópica humanista sobre a utilidade, mas sim de verificar, no contexto das produções textuais sobre livros e escritos portugueses e luso-brasileiros do século XVIII, como a utilidade foi um dos elementos comuns a autores, censores, tradutores e leitores que amparavam suas reivindicações e prerrogativas com base usos comuns do termo.

Nesse contexto, um conjunto inicial de agentes a utilizarem o termo foram os censores – particularmente após 1768, quando o sistema de censura sofreu uma profunda modificação, passando de uma censura preventiva e pastoral contra ideias que pudessem atentar contra a fé ou as leis do reino, para uma ação própria do intelectual como legislador, em que o critério de admissão na República das Letras passou a ser a própria utilidade, “ou seja, sua capacidade de converter os ignorantes à verdade” (TAVARES, 2013. p. 167). Este significado, verificado por Rui Tavares em sua análise da atuação dos censores pombalinos, tornou o termo a moeda padrão de troca das permissões de impressão e circulação de livros e impressos. Podemos ilustrar isso com o exemplo, estudado por Tavares, do censor João Batista de São Caetano, para quem “os critérios mais frequentes para aprovar um livro [eram] a utilidade e a necessidade. De acordo com ele e os outros censores, a utilidade era de fato o critério de avaliação de um livro, às vezes de modo exclusivo, às vezes associado a seu duplo ‘útil e necessário’, transformado em fórmula – uma espécie de selo aposto a cada parecer” (TAVARES, 2013, p. 299).

Além dos censores, outros agentes da palavra escrita e impressa compartilharam o uso frequente do conceito de utilidade ao se referirem a livros e escritos. Em um extremo do “circuito de comunicação” da palavra impressa, que vai do autor ao leitor, passando por editores, censores, livreiros, etc. (DARNTON, 2002, p. 9-26), autores, tradutores e, com menor frequência, editores, usaram recorrentemente noções de útil e utilidade em suas justificativas para o esforço despendido na confecção das obras que apresentam ao público, geralmente expressos nos paratextos editoriais – dedicatórias, prefácios, etc. Os leitores, ainda que sejam a parte mais elusiva deste circuito, podem ter suas vozes acessadas pelos historiadores em pedidos, feitos à censura, para ter e ler livros que esta mesma censura proibira. Vamos tentar perseguir, nessas vozes diversas, restritas ao espectro social bastante heterogêneo daqueles participantes da “República das Letras” em Portugal do fim do século XVIII, os usos e sentidos atribuídos à utilidade.

Um primeiro exemplo foi o censor Frei Francisco de Sta Anna, que corroborou o sentido de conversão à verdade do termo ao escrever seu parecer sobre o livro As obrigaçoens dos Amos e dos Criados de Claude Fleury, cuja tradução para o português (feita por Joze Caetano de Mesquita, professor de retórica e lógica do Colégio dos Nobres) ele censurou em 1771. Segundo o censor, o livro era utilíssimo “porque comprehendendo o seu assumpto todo o genero de pessoas, todas se podem aproveitar das prudentes e sabias instrucçoens de que está cheia” (ANTT. Real Mesa Censoria Cx 7, 1771, n 38). Outro censor, o Frei José Mayne, ao censurar, em 1786, a tradução dos Exercicios de Piedade para todos os dias do anno do Padre Croiset afirmava que a utilidade da tradução (que ele aprovou) residia na possibilidade dos leitores derivarem exemplos e imitarem “os verdadeiros Heroes da Santidade, ajustando-se por meio da Leitura com suas imitaveis acções”, continuando assim o esforço de “conversão” expresso por Tavares (ANTT. Real Mesa Censoria, Cx 13, 1786, n. 20). O sentido foi incorporado também pelos produtores dos textos que os censores analisavam. O tradutor anônimo do Compêndio da vida da B. Maria da Encarnação, por exemplo, simplificou esta ideia ao associar, em sua “prefação” a “utilidade da lição deste Compêndio” com “regras práticas, e seguras da perfeição cristã” para que os leitores tivessem, ainda que parcialmente, comportamentos virtuosos (ROMANO, 1792). O livreiro e editor Francisco Rolland confirmou essa ideia no “prólogo do editor” da tradução das Fábulas de Esopo, que ele fez publicar em 1791, ao afirmar que “estando na nossa língua, com a sua moralidade, serve este Livro de utilidade a todos aquelles que não tem maiores conhecimentos”, ou seja, o livro poderia levar o conjunto dos leitores (ou ouvintes de leituras públicas) à verdade (ou talvez devêssemos deixar claro – até uma certa verdade).

Porém, os textos que utilizaram os termos útil ou utilidade ao se referir aos livros e escritos, geralmente tomavam a noção de utilidade como previamente dada, aplicando-a como uma adjetivação qualificativa sem a necessidade de uma explicação – apontando para sentidos compartilhados do termo. Este foi o caso do padre Jacome Faria Galizia, tradutor que “dezeja[va] ser util ao publico com as suas traduções” mas, ignorando as regras da língua portugueza, as deixou “cheya[s] de defeitos, e impropried.es q se não devem permitir na tradução da Sagrada Escritura” (ANTT. Real Mesa Censoria, Cx 7, 1771, n. 10). O mesmo aconteceu com a censura da Vida de Justiniano, ou Hebrain, composta por Joaquim Jozé de Souza e censurada, em 1773, pelo frei Francisco Xavier de Santa Anna, que achava o trabalho do autor útil, apesar dele somente “traduzir em estillo rasteiro o que acha escripto em alguns livros bons”:

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Conheço que não he muito habil para Escriptor, mas devo confessar que empregando-se em traduzir Authores de mericimento, não deixa de ser util o seu trabalho. O nosso idiôma carece de algumas coisas que Elle quer produzirao publico, e como o faz livre de erros substanciaes, merecem alguma condescendencia as imperfeiçoens que se-lhe descobrem. […] (ANTT. Real Mesa Censoria, Cx 8, 1773, n.2).

 

Reafirmando este sentido prévio, o tradutor anônimo da Arte de tratar a si mesmo nas enfermidades venereas estava certo que a publicação do “livrinho” tinha utilidade “para o bem público” (BOURRU, 1777. p. xxxvi- xxxvii), no mesmo tom que um dos leitores da Miscellanea curioza e proveitoza (1782) organizada e publicada por Francisco Rolland a partir de 1779 registrou suas preferências em uma carta ao editor, na qual elogiava o esforço editorial que franqueava “muitas Obras, que nos servem de muita utilidade” para “desabusar, e augmentar, a nossa litteratura, e introduzir neste Reino todas aquellas Maximas, com que os Homens se illuminem, e augmentem os seus pensamentos.”

Simultaneamente, reforçando a ideia de acesso à verdade, a utilidade era invocada como valor inerente aos livros ou às traduções. Para o censor (e tradutor) Antonio Pereira de Figueiredo, “pelo que toca à Traducção Portugueza, que o Pe. Custodio da Silva Barboza quer imprimir: era muito para dezejar, que huã obra deste porte e desta utilidade, cahisse em mãos mais polidas do que parecem ser as deste Traductor” (ANTT. Real Mesa Censoria, Cx 8, 1772, n. 26), ao passo que para o frei Francisco Xavier de Santa Anna, “não ha quem ignore, ou quem duvide da utilidade desta Obra” (os Discursos sobre a Historia Ecclesiastica do abade Fleury) (ANTT. Real Mesa Censoria, Cx 8, 1772, n.56), e para o Frei José da Rocha, “esta Obra [o Diccionairo Abreviado das Antiguidades, escrito por Pedro Joze da Fonseca] he de grande utilidade, e importancia para a intelligencia da Historia Antiga, tanto sagrada quanto profana, e para a dos autores gregos e latinos” (ANTT. Real Mesa Censoria, Cx 11, 1779, n. 16).

Este sentido também pode ser visto na dedicatória que José Ferreira da Silva escreveu para sua tradução das Observações sobre a propriedade da quina do Brasil, ao pedir ao Príncipe regente que ignorasse as falhas da tradução e dedicasse sua atenção “para o util da materia, e o zello do bem publico” (COMPARETTI, 1801). O mesmo ocorreu na dedicatória dos Princípios de direito mercantil, de José da Silva Lisboa (1801). O autor disse ao príncipe (e aos leitores) que “A utilidade, e a falta de hum ensaio de literatura deste genero em linguagem patria, servirá de apologia á temeridade da empreza”.

Francisco Rolland estendeu este sentido a todo seu esforço editorial, expandindo também a noção de que a própria leitura era uma parte funcional do conceito de utilidade:

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"Ora pois deixaria eu de publicar hum Livro, de que pendem tantas utilidades, e onde todos pódem achar instrucção? E deixará esta Traducção de não ter o mesmo acolhimento, com que os Francezes acolhêrão o seu Original? Creio que os Portugueses a acceitaráo com bom grado, pois a Nação cada vez mais se vai illuminando, e procurando os bons Livros já nos seus mesmos Originaes, já nas Traducções que delles tão louvavel e utilmente se fazem. Quanto se tem conhecido a utilidade, que brota da contínua, e boa lição dos livros!” (RIGORD, 1780).

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Embora os exemplos se multipliquem em grande quantidade, um último pode dar o contraponto necessário, ao definir um livro como algo inútil para o esforço de “iluminação” envolvido nestes processos:

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"Senhora

Vi e examinei com a exacção possivel a tradução da Pharmacopeia Matritense, feita por Florencio José Loeiro, á que ajuntou diferentes formulas de varios Autores, com muita Confusão e pouco criterio: está cheia de muitos vicios, e erros que pedião hum incansavel trabalho para os corregir se fosse necessaria a impressão de huma tal tradução, que por sua natureza nada tem de util, e por isso me parece não ser só desnecessaria, mas prejudicial que se imprima.

Lisboa, 28 de fevereiro 1791.

Jose Vicente Borzão" (ANTT. Real Mesa Censoria, Cx 15, 1791, 11A, sem grifos no original).

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Complementarmente, a utilidade era também invocada como sendo capaz de justificar livros que, de outro modo, seriam recusados pela censura em função da pobreza de suas traduções portuguesas, como foi o caso da leitura de frei Joaquim do Monte Santo sobre os Provérbios de Salomão, traduzidos por José Antonio da Silva Rego. O censor julgou a tradução “sofrível”, porém a utilidade da obra serviu de argumento para a concessão da licença para a impressão (ANTT. Real Mesa Censoria, Cx 8, 1773, n.36). Outro censor a usar do mesmo argumento foi o Frei Francisco de São Bento, que autorizou que João Bertrand imprimisse a obra de Massillon, Conferências e discursos e sínodos, apesar da tradução ruim, já que “estes defeitos não tem nada contra a Religião, nem contra o Estado, e por outra a grande utilidade, q se pode seguir desta obra assim defeituoza, como esta, pela falta q. há de livros que tratem na nossa língua das obrigações dos Parochos, materia tão necessaria e quazi o único objeto deste livro” (ANTT. Real Mesa Censoria, Cx 8, 1774, n. 30).

No espectro oposto, Domenico Vandeli sugeriu não permitir a Memoria do descobrimento da Ichtyocolla, compilado pelo médico (e censor) Manoel Joaquim Henriques de Paiva, recomendando que o autor se empenhasse na tradução de diversas obras já existentes sobre o tema, já que a função básica de um “novo descobrimento, é ser util a Nação” (ANTT. Real Mesa Censoria, Cx 14, 1788, n, 53), e ainda no início do século XIX o conceito permanecia instrumentalizando as decisões dos censores:

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"O Conselho Geral do Santo Officio me ordena remetta a V, M. a obra intitulada Victor ou o menino da Selva, com a copia da Censura que lhe for feita, e por ser a Obra, e a Traducção tal que por sua pouca importancia, e nenhuma utilidade pareceo não ser digna de serio exame Não mandou dar vista da referida censura na conformidde do par. 9 do Alvara de 3o de junho de 1795; o que participo a V. M. de ordem do mesmo Conselho [etc.]" (ANTT. Real Mesa Censória, Cx 109, 1804, sem grifos no original).

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Os próprios autores recorriam a este sentido quando tentavam inserir seus trabalhos nos processos retóricos que impunham, nas dedicatórias, uma certa humildade. O frei José Mariano Veloso agiu assim ao dedicar sua tradução do Compendio sobre a canna ao príncipe regente Dom João:

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"Mas eu devo confessar junto ao throno de VOSSA ALTEZA REAL, que, apezar das imperfeições da minha traducção, tem sido tal o efeito das soberanas, e efficazes Ordens de VOSSA ALTEZA REAL, que os povos do Brasil se tem acoroçoado a grandes refórmas nas suas praticas ruraes. Os fabricantes d’assucar tem melhorado as suas moendas, e fornalhas, por toda a sua marinha, e a sua notoria utilidade acabarà a Obra. Se eu, SENHOR, tendo recebido cartas de pessoas, que me são desconhecidas, de agradecimento, sendo disto hum instrumento meramente passivo, quanta não deve ser a obrigação para com VOSSA ALTEZA REAL, á cuja iluminada providencia tudo se deve" (DUTRONNE, 1801).

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Ildefonso Leopold Bayard, prefaciando sua primeira tradução (aos quinze anos) na iniciativa editorial capitaneada por Veloso, insere o tradutor nesta lógica, já que quem deve ter alguma utilidade é o tradutor (ou autor), e não somente seus livros (INSTITUTO 1801). Da mesma forma, Manuel Arruda da Câmara, na dedicatória ao príncipe regente impressa na Memoria sobre a cultura dos algodoeiros, publicada na mesma “Officina da casa Litteraria do Arco do Cego”, em 1799, usou três sentidos distintos do termo. Em primeiro lugar, ele associou a utilidade da escrita com vaidade, demonstrando existir quem buscasse se mostrar útil por esse motivo: 

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"Naõ he a vaidade de me querer inculcar util aos meus compatriotas, o que me obriga a levar ao supedaneo do throno de V. A. R. estas primeiras observações agronomicas sobre a interessante cultura do Algodão, que tenho feito […]" (CAMARA, 1799). 

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A seguir, ele construiu uma relação quase mecânica entre a obrigação de ser útil, escrevendo a obra, por ter sido beneficiado por uma educação devotada a esta finalidade (a utilidade), em Coimbra:

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"Tendo ouvido na Universidade de Coimbra os Mestres communs da Nação, e na de Monpelher os dous sabios, assás conhecidos na Republica Litteraria, quero dizer, a Antonio Gouan, em Botanica, e a João Antonio Chaptal em Chymica, me recolhi ao meu lar, ardendo nos desejos de poder ser util á minha Nação, pelos conhecimentos, que tinha adquirido em as Sciencias Naturaes".

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Finalmente, as relações de clientelismo transparecem, mostrando que “util” e “utilidade” estão diretamente relacionadas com “razões de estado”, pois era a vontade do monarca que definia um súdito como útil (ou inútil … embora o termo raramente apareça na documentação):

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"A mesma mão poderosa, que me levanta do nada, e me appresenta a face de toda a Nação, e do mundo todo, como hum cidadão util, e hum fiel vassallo, queira dar-lhe aquella grandeza, e importancia, que a condignifique em a sua Augusta presença"(CAMARA, 1799).

 

No outro extremo do circuito de comunicação da palavra impressa, os leitores, ávidos por acesso às obras proibidas, usaram o conceito de utilidade como motivo ou justificativa de seus pedidos à Real Mesa Censória. Assim agiu Manoel da Cunha de Andrade e Souza, em 1776, “desejando […] instruir-se nas máximas da jurisprudência, da Política, da Economia, da Ética, e de outras Faculdades que o possao dispor, e habilitar [para] exercer as obrigações da sua Magistratura, e ser útil ao Estado”. Para atingir esses objetivos, ele solicitava a licença para livros que “não [pode], nem deve, Ler e Reter sem licença de V. Mag. e não obstante ser pessoa de notória probidade”, pois os livros são “Literatura, em [que] senão prezume o perigo da perversão, antes será útil o lelos p.a combater os ímpios, e os Monarchomacos” (ANTT, Real Mesa Censória, Requerimentos, CX 113, p. 151). Daniel Eduardo Roiz Grijó, advogado prático da Comarca de Pernambuco, pediu para “ler, e estudar todos os livros prohibidos” em 1803, pelos seguintes motivos:

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"[…] para sua [maior] instrucção, utilidade do publico como para maior e mais fundamentalmente sustentar os Direitos da Regia authoridade a cada passo atacada pelas continuas uzurpaçõens, e operações do sempre avido clero praticadas ordinariamente com notorio vexame dos fieis vassalos de V. A. R. Moradores naquelas Colonias" (ANTT. Real Mesa Censória, Cx. 112 p. 226-228).

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Um último uso parece ter surgido nos textos e paratextos analisados aqui mais para o fim do período em foco, e diz respeito à ideia da utilidade que a população tem para o Império. Antonio José Vieira de Carvalho usou esta ideia ao referir-se à população de origem africana em sua tradução das Observações sobre as enfermidades dos negros, dizendo crer que seu esforço era agradável ao Príncipe regente por cuidar “á Humanidade, na maior parte, na mais util, e a mais desvalida da população dos seus Senhorios na America” (DAZILLE, 1801). José Feliciano Fernandes Pinheiro, por sua vez, chamou de “classe util” os “granjeiros práticos” para quem dirigiu seus Discursos apresentados à meza da agricultura (1800).

Poucos foram os usos, neste universo documental, que associavam utilidade a algum conteúdo pedagógico, como fez o militar Elias Alexandre da Silva Correia, ao descrever a viagem atribulada do navio Nossa Senhora da Ajuda do Rio de Janeiro até Lisboa, esperando que uma das consequências do relato fosse que os navegantes portugueses “colhessem a utilissima lição de como se hão de haver em casos semelhantes” (PEREIRA, 2014, p. 242). Não obstante, este sentido do termo também existia, como fica evidente nesta citação.

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Apresentados estes usos dos termos, retornamos à questão inicial de pensarmos utilidade como um termo cujos significados foram social e historicamente construídos por agentes sociais complexos. Vimos, nos muitos exemplos, o quanto os agentes da palavra escrita compartilharam sentidos comuns do termo, utilizando-o como definidor de discursos e práticas em torno do mundo do livro. Ser útil era condição quase indispensável para que o esforço de escrita, tradução e, eventualmente, impressão de uma obra acontecesse. Embora restritos ao universo das pessoas envolvidas, de algum modo, com o mundo do livro, estes usos permitem que pensemos em utilidade como um conceito socialmente compartilhado no contexto em foco (BENTIVOGLIO, 2010, p. 114-134). É possível também imaginar que outros conjuntos documentais possam complementar ou ampliar o conhecimento sobre os usos dos termos. Porém, neste conjunto de documentos, surgindo como sinônimo de “necessidade”, “bem comum”, as noções de útil e utilidade quase sempre apontam para uma benesse coletiva mediada pelo monarca e pelo império: ser “útil à nação”.

O que temos, portanto, é uma função clara de definição – no contexto indicado – sobre as formas como os textos deveriam existir: se a utilidade era condição inicial da autorização para ser impresso, também o era para a produção textual. O autor (tradutor, editor, etc.) que se dedicasse à escrita, deveria fazê-lo para ser útil, e seu texto circularia (seria lido, portanto) se também o fosse. Não é nenhum salto imaginativo muito grande pensar que este critério auxiliava os leitores (ao menos os leitores “letrados”, no sentido definido aqui) nas suas escolhas de leitura.

Assim, as ideias em torno de útil e utilidade servem como ponto de partida para pensar a realidade histórica – neste caso, o Antigo Regime português. Embora seja importante e necessário ampliar o espectro documental sobre o termo, utilidade é, de fato, um conceito a partir do qual se pode pensar este passado específico.

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