PAÍS
Dora Shellard Correa - UEL
Publicado em 16/01/2023
País está na raiz da palavra paisagem (SANDEVILLE JÚNIOR, 2005). Poderíamos ter feito um verbete único para os dois termos País e Paisagem, contudo, embora paisagem no século XVIII fosse uma representação da terra visualizada, significava um gênero de pintura e pressupunha ideias que deformavam a natureza observada. Já país embora significasse terra, era utilizado no sentido de superfície, espaço, dimensão, que subentendia uma delimitação, em geral, assentada abstratamente em aspectos políticos. Além disso, no século XIX e XX, o emprego dos vocábulos se transforma não só em português. País passa a ser identificada especialmente como um conceito político, enquanto paisagem como um conceito físico-ambiental.
O significado de algumas palavras portuguesas, particularmente aquelas que remetem ao espaço físico, político e cultural, como país, devem ter passado por sutis mudanças, ou melhor, adaptações para serem empregadas às terras além-mar. Laura de Mello e Souza (2006) e Sérgio Buarque de Holanda (1992) tratando de temáticas totalmente diferentes da nossa, demonstram que se deve olhar com desconfiança e muito cuidado o uso de práticas, conceitos e costumes transplantados da Europa para a realidade americana. Tanto país quanto o termo derivado, paisagem, aludem a realidades políticas, sociais, étnicas e ambientais. Aspectos esses que tinham peculiaridades na América Portuguesa que a distanciava da realidade europeia. Não se tratava somente de diferenças climáticas e da variedade de biomas, mas não só o território português na América era teórico, uma vez que as fronteiras eram na prática desconhecidas e encontravam-se muito além do espaço efetivamente dominado pela Metrópole até a primeira metade do século XIX, como essa grande porção era ocupada, dominada e transformada por distintas etnias indígenas.
A palavra país vem do francês pays. Esta já consta em obra de Grégoire de Tours de 572 (CARNEIRO, 2011). Segundo a Encyclopedie o termo pays caracterizava um espaço físico impreciso e parcelas de terra de extensão relativamente grande (V. 12, 1775). Significava tanto território quanto habitante (HOLZER,1999; CARNEIRO, 2011). Em português, de acordo com o padre Rafael Bluteau, definia-se o termo, no século XVIII, como terra e região (v. 6, 1720). Na entrada terra ele esclarece que o termo terra significa tanto o planeta, quanto o mais pesado dentre os quatro elementos da natureza (fogo, terra, água e ar) e quanto a costa. Região é certo espaço de terra. Contudo, como veremos, também em português similar ao caso francês, o seu uso revela que país, em geral, compreende a ocupação humana.
O termo, transplantado de Portugal, terá que ser conformado à realidade da colônia sul-americana. Um território extenso parcamente conhecido, ocupado e dominado pelos agentes da Metrópole e pela elite colonial. Politicamente o espaço territorial estava dividido em capitanias com expressiva autonomia (FAORO, 1975). Além dos limites da colonização portuguesa, mas dentro do território que diplomaticamente era considerado português, os sertões, a área era ocupada, dominada e explorada por inúmeras etnias indígenas. Algumas conhecidas e outras tantas desconhecidas pelos colonos, algumas com as quais eles mantinham contatos e outras que resistiam de diferentes modos.
No século XVIII, no livro produzido pelo historiador Sebastião da Rocha Pita, (PITA,1976), nas memórias do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira sobre a viagem pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (FERREIRA, 2008), em correspondência redigida pelo Governador e Capitão General do Estado do Grão Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado (MENDONÇA, 2005) e no conjunto de documentos organizados por Afonso Botelho de San Paio e Souza para serem entregues à rainha D. Maria I (NOTÍCIAS, 1956), encontramos o termo país sendo utilizado como uma região de dimensões variadas, delineada teoricamente em geral por parâmetros políticos.
A América portuguesa era um país. Na sua introdução à história da América portuguesa, Sebastião da Rocha Pita escreveu: “Do Novo Mundo, tantos séculos escondidos e de tantos sábios caluniado, onde não chegaram Hanon com as suas navegações, Hércules líbico com as suas colunas, nem Hércules tebano com as suas empresas, é a melhor porção o Brasil; vastíssima região, felicíssimo terreno em cuja superfície tudo são frutos [...] admirável país, a todas as luzes rico, onde prodigamente profusa a natureza se desentranha nas férteis” (p. 19).
Na passagem abaixo país significa a América portuguesa, ainda toda uma superfície de dimensão e características físicas e humanas desconhecidas e indefinidas para os observadores, mas constituindo uma totalidade, as terras achadas e tomadas pela armada de Cabral que conforme o Tratado de Tordesilhas (1494) eram de direito do Reino Português: “Neste estado existia nossa América, e viviam os seus naturais, a terra inculta e bárbaros os habitantes, quando a descobriu o General Pedro Álvares Cabral, que alegre de ser o primeiro que achou [...] mandou por uma, com alguns gentios e mostras dos gêneros do país, aviso deste descobrimento a Portugal” (p. 32).
Individualmente, cada capitania também era um país.: “Em algumas partes do país de S. Paulo há gado vacum de tal qualidade, que deixando de nascer a erva abundante que produz aquele terreno, se sustenta só da terra, a qual [...] em prova que a terra de que se mantêm, os nutre com vantagens às mais que se criam em pasto comum” (p. 32). Na passagem a seguir país é empregado como o território político/administrativo, a Capitania de Pernambuco: “É o país de Pernambuco dos mais abundantes, amenos e ricos do Brasil. Os seus engenhos dão o mais fino açúcar, as suas matas as mais preciosas madeiras, o seu terreno os mais deliciosos frutos” (p. 60). Na próxima passagem país é utilizado no sentido de um território político administrativo da Bahia: “e moradores até além do sítio chamado o Rosário, quartel dos soldados que vêm nas naus de comboio. A jurisdição desta paróquia, por partes menos povoadas, se estende a muitos espaços do país, compreendendo a nova igreja da Soledade o noviciado dos padres da Companhia, as ermidas da Boa Viagem de frades de S. Francisco, e de Monserrate de monges de São Bento” (p. 47).
Há uma carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador e Capitão-General do Estado do Grão Pará e Maranhão de 1757, em que o sentido de país em referência a uma capitania fica muito claro: “ILMº e Exmº Sr. meu irmão do meu coração: Quando o Desembargador Intendente-Geral João da Cruz Pinheiro estava acabando de concluir algumas dependências nesta capitania para passar à do Piauí com o emprego que S. Maj. foi servido conferir-lhe, e em conseqüência das reais ordens que recebeu para pôr em sossego e quietação aquela larga extensão de país que há tanto tempo têm padecido aqueles povos as calamidades que a V. Exª são notórias, quando menos o esperávamos foi Deus Nosso Senhor servido levar para si aquele honrado ministro no dia 25 de fevereiro, deixando-nos assim baldadas todas as esperanças que justamente tínhamos de que a atividade, zelo e honra com que o dito ministro servia a S. Maj. de reduzisse à paz e concórdia aquelas miseráveis gentes, e desse a cada um o que legitimamente era seu. (MENDONÇA, v. 3, p. 284, 2005).
Mas também havia países no interior das capitanias, particularmente nos seus sertões. Discutindo sobre os negócios que os jesuítas faziam o que se extraía dos sertões, Francisco Xavier de Mendonça Furtado definiu que: “É preciso primeiro assentar como princípio certo e que não pode nele haver dúvida alguma que o mandar a estes sertões extrair drogas, quais são cravo, cacau, salsa, cupaúbas, gêneros todos que dizem respeito ao negócio de fora, e além deles fazer salgas de peixe, manteigas e tartarugas, que pertence ao negócio da terra, é um verdadeiro comércio e o mais importante e quase único destes países, e como tal defendido aos governadores e ministros por muitas leis [...]” (MENDONÇA, v. 3, p. 138, 2005).
Afonso Botelho de San Paio e Souza conta sobre a entrada que faz aos campos de Guarapuava, parte dos sertões do Tibagi e Ivaí: “Neste posto me conservei fazendo correr aquela grande campanha por todos os lados não só para tomar verdadeiro conhecimento daquele país como para averiguar o gentio que por aquelas partes habitava tendo-nos eles vindo ver algumas vezes em avultado número pelo modo possível agradá-los” (NOTÍCIAS, 1956, p.155). Nesse caso está denominando de país toda uma extensão de campos do centro-sul do atual estado do Paraná, identificados então como campos de Guarapuava, ocupados pelos indígenas que os agentes da Metrópole denominavam de Xoclans. Conhecidamente esses campos estavam localizados nos sertões do Tibagi, que desde o Tratado de Madrid (1750), diplomaticamente encontravam-se dentro do território da América Portuguesa, na capitania de São Paulo.
Observamos o uso de país tanto em comentários a respeito de terras ocupadas e dominadas por um grupo étnico como por vários grupos indígenas. Rocha Pita, caracterizando grupos indígenas da capitania de São Paulo relata que: “tinham principais, a quem davam moderada obediência, que era mais respeito que sujeição. Repugnantes à doutrina evangélica, que lhes pregou o glorioso apóstolo S. Tomé, a quem não quiseram ouvir e afugentaram de todos os seus países, dos quais ausentando-se o sagrado apostólico” (p. 36). Nessa passagem países está sendo utilizado no sentido de região, com a sua delimitação definida pela ocupação política e cultural, território de um determinado grupo étnico.
É pertinente observar que mais para o final do século XVIII o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira em seu relato sobre a viagem que fez às capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá predomina a referência a país como terra de um grupo político/étnico, de Portugal, um espaço físico delimitado politicamente: Descrevendo uma dança dos Yurupixuna na foz do rio Caburé, escreveu: “Parece que se está vendo a saída do Exército, a sua marcha pelo país do inimigo, as precauções com que acampam, a ardileza com que se vão dispondo alguns destacamentos em emboscada, o modo de surpreender o inimigo, o tumulto e a ferocidade do combate, o triunfo da vitória e outras muitas circunstâncias” (1974, p. 44). Em outro momento conta que: “Quando o capitão-mor Pedro Teixeira navegou o Amazonas, para completar a desejada descoberta deste Rio, ocupava esta Nação as suas margens e ilhas, na distância de duzentas léguas. Há tradição que este não é o País nativo dos Umauás; mas que se refugiaram nele para fugirem dos Espanhóis quando conquistaram a terra à qual deram o nome de novo Reino de Granada, passando pelo Japurá ao Amazonas” (1974, p. 51).
Na apresentação do volume de documentos sobre as entradas nos sertões do Tibagi entre 1786 e 1774 à D. Maria I por Afonso Botelho de San Paio e Souza indica a existência de inúmeros países na América Portuguesa, na área colonizada bem como além dela, no sertão. Mas todos esses países e que inclusive se sobrepõem eram considerados de domínio do reinado português, de onde ele poderia extrair riquezas: “Depois, Senhora, conseguindo o fim proposto desta expedição como se estenderiam os domínios de Vossa Majestade, o número dos seus vassalos como cresceriam continuando-se naquele projecto, que bastaria para imortalizar qualquer Reinado; os régios erários seriam mais opulentos, como é fácil de crer a quem conhece aqueles países, a pública utilidade seria mais vantajosa já pela cultura dos campos [...]” (NOTÍCIAS, 1956, p. 3). Os países a que se refere Afonso Botelho objetivava-se incorporá-los aos domínios de “vossa Majestade”, assim como tornar aqueles que os habitavam vassalos da Rainha, eram os sertões do Tibagi, localizavam-se dentro da capitania de São Paulo (BELLOTTO, 2007).
No relato sobre o primeiro encontro que os soldados Afonso Botelho tiveram com os índios dos campos de Guarapuava em 1772, fica claro que embora esse país estivesse dentro do domínio colonial e o senhorio era de direito dos reinóis, não era dominado concretamente por eles: “Ficou Sua Senhoria aplicando todo o cuidado na eleição do. lugar para construção de üa fortaleza em o respeito militar, estabeleça este continente o direito senhorio deste país, e para com ela animar o corpo de üa populosa povoação, que provavelmente se há de estabelecer com multiplicadas fazendas de gado, para o que convidam êstes diliciosos, amenos, e férteis campos” (NOTÍCIAS, 1956, p.226).
A dimensão de um país era bem variável, podia referir-se como vimos a regiões extensas como a América Portuguesa, a uma capitania, a um sertão, uma área indígena, ou ainda a uma localidade. Há um relato, possivelmente escrito pelo próprio Afonso Botelho em que o termo país é empregado no singular referindo-se a um perímetro pequeno, aos arredores de onde os soldados estavam acampados. Resumindo a 3ª. expedição comandada pelo capitão Francisco Nunes Pereira (da vila de Iguape) em 1769, escreve “saiu também ao rio Paraná, onde se arranchou, e deu parte ter feito a sua navegação com felicidade; e mandando explorar o país, encontraram com canoas, que da cidade de S. Paulo desciam para a Praça Nossa Senhora dos Prazeres” (NOTÍCIAS, 1956, p. 9). Na descrição feita pelo Tenente José Rodrigues da Silva em 1771 da entrada dele e de seus soldados nas ruínas da antiga vila Rica do Espírito Santo, vila espanhola, no rio Ivaí, denominado de D. Luís pelos expedicionários, o vocábulo país significa localidade uma vez que estão falando das ruínas de uma cidade que se idealizava ocupar. A vila foi abandonada pelos colonos espanhóis por volta de 1630 frente a iminência do ataque dos “portugueses de São Paulo”. O que se planejava originalmente em 1771 era a ocupação daquele local com os soldados e suas famílias: “Estava a gente toda tão contente da paragem, que já elegiam as partes, em que haviam de fazer os seus sítios, e alguns tinham justo casamentos com irmãs de outros, para irem viver naquele alegre país” (NOTÍCIAS, 1956, p. 145).
País é terra e região. A referência a um aspecto dado étnico/político, país nativo dos Umauás, a um dado político – capitania de São Paulo, definem a delimitação territorial da terra ou região a que se refere a narrativa. No século XVIII uma extensão da superfície em geral delineada pelo narrador tendo como parâmetros, em geral, um fato político, América portuguesa, capitania de Pernambuco, área dominada e conhecia pelos agentes do Estado metropolitano e elite colonial, espaço de ocupação de grupo indígena. Assim, cada capitania era um país, mas dentro de cada uma havia vários e diferentes países, os campos de Guarapuava. Mas também se referiam a localidades, áreas reduzidas nos sertões, fora do domínio efetivo das autoridades coloniais, o sítio das ruínas de uma cidade do século XVII, a antiga vila Rica do Espírito Santo deixada pelos espanhóis em 1630. Nesses dois últimos casos a palavra país se confunde com o uso do termo terra e a sua delimitação parece ser factual e objetiva.
Mas embora em alguns casos se pudesse substituir país por terra, há alguns aspectos no uso de cada uma dessas palavra que delimita esferas diferentes a que se referem, não se confundindo. País, em geral, é empregada como uma extensão territorial horizontal, uma região, que tem a sua delimitação abstrata estabelecida por um aspecto político, um domínio, um senhorio de Estado, de um grupo ou vários grupos indígenas: América portuguesa, capitania de Pernambuco, sertão do Tibagi, país dos Umauás. Em alguns momentos a construção nos ilude, como no caso de o “país seco”. Mas o termo nesse caso estava se referindo à capitania do Piauí. Entretanto, o vocábulo também remete a um espaço físico de extensão limitada e as suas balizas definidas por uma ação prática, que não aludem claramente a um domínio ou senhorio político singular, se confundindo com terra.
Terra é empregada como chão: “Não achou neste sítio sinais de ali ter chegado gentio, e só a cruz, que tinha ficado naquele abarracamento estava por terra, e demorando-se até o dia vinte e um, em que partiram, e chegaram ao abarracamento do Rio Jordão” (NOTÍCIAS, 1956, p. 23). Como a parte sólida da superfície do planeta Terra em oposição a água: “Partiram da Bahia, e chegados a Pernambuco, mandou o general Diogo Flores de Baldés a gente por terra, e ele com a armada deu fundo fora da barra [...] Saíram nossos generais a terra, desassombrando a todos os moradores daquelas capitanias” (PITA, p. 97). É um dos quatro elementos do planeta, um recurso mineral, é solo - terra que sustenta a erva que alimenta o gado vacum de São Paulo como informou Sebastião da Rocha Pita.