Decoro (o que está adequado aos tempos, aos lugares e às situações)
Antonio Cesar de Almeida Santos (UFPR)
Versão deste texto foi publicada nos Anais da XV Semana de História da UNICENTRO, Campus Irati (abril/2021).
Disponível em: https://evento.unicentro.br/anais/semanahistoriairati
Publicado em 12 de maio de 2021.
Vamos apresentar algumas considerações acerca da palavra decoro no contexto da cultura letrada portuguesa do século XVIII. Comecemos, entretanto, no presente. Nos dias de hoje, a palavra decoro aparece especialmente no campo das atividades políticas, no qual são comuns as referências ao “decoro parlamentar”, que serve para designar que o político deve adequar seu comportamento à dignidade do cargo que ocupa. Todavia, parece que estas mesmas pessoas às quais o decoro é exigido não sabem ao certo o seu significado, pois são frequentes as chamadas “quebra do decoro”, quando agentes públicos realizam ações que vão contra o decoro. Porém, conforme Renato Ventura Ribeiro (2007), a definição do conceito de decoro parlamentar, previsto no Artigo 55 da Constituição Federal, “é incompleta, gerando dúvidas na sua aplicação”.
Tendo em vista o (des)entendimento que os políticos têm da palavra decoro, ganha pertinência a afirmação de Mary del Priore e de Márcia Pinna Raspanti (2018): “O conceito de decoro, que no passado foi alvo de preocupação constante, adquiriu contornos muito mais sutis e até nebulosos”, nos dias atuais. Para a sociedade portuguesa e a luso-brasileira dos séculos XVII e XVIII, “qualquer autoridade ou pessoa de destaque na sociedade devia ser guiada pelo decoro”, que se manifestava pelos comportamentos e maneiras de (bem) se apresentar em público: os excessos deveriam ser evitados e os trajes precisavam estar adequados à posição social do indivíduo.
Como o significado desta palavra parece ter sido esquecido, particularmente pelos que exercem cargos públicos e de representação política, consideramos necessário questionar o seu uso, à medida que, aparentemente, seu sentido sofreu alterações, desde o século XVIII. Em vista disso, e recorrendo a alguns documentos produzidos no contexto da expulsão da Companhia de Jesus de Portugal (1759), vamos investigar o uso e os significados dessa palavra – decoro – para a sociedade portuguesa do século XVIII. Para tanto, adotamos uma abordagem que considera que “o sentido de uma palavra pode ser determinado pelo seu uso” (KOSELLECK, 2006, p. 109), e que é necessário levar em conta “quem fala, em que contexto e com que intenção” (MOLANO VEGA, 2015, p. 170). Trata-se, portanto, de investigar o que uma determinada pessoa quis manifestar quando utilizou uma dada palavra em uma determinada situação (SANTOS, 2015). Também consideramos que o estudo dos usos e significados do léxico de uma sociedade conduz à apreensão do mundo social que está sendo investigado (SANTOS, 2018).
Como mencionado, pretendemos apontar algumas questões acerca do uso da palavra decoro em meados do século XVIII, a partir da documentação produzida no contexto de um determinado evento: a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e demais domínios portugueses, por intermédio de Lei datada de 03 de setembro de 1759. Os jesuítas foram perdendo influência junto a D. José desde o início do seu reinado (1750), situação que foi se agravando, com seguidas denúncias de que eles abusavam dos indígenas aldeados em suas missões na América, impedindo que os colonos os utilizassem como mão de obra. A Companhia de Jesus também esteve envolvida no episódio conhecido como Guerra Guaranítica (1754-1756), quando foram acusados de mobilizar os indígenas para lutarem contra a transferência de suas aldeias da província espanhola do Paraguai para território luso. Em setembro de 1757, os confessores jesuítas do rei, da rainha e de outros membros da família real foram expulsos do Paço. A sequência de acusações culminou com a implicação de diversos religiosos da Ordem no atentado sofrido por D. José, em setembro de 1758, do qual saiu ferido por um tiro.
No início de 1759, vários jesuítas foram presos. Em 19 de janeiro, o rei enviou uma carta ao Regedor da Casa da Suplicação, ordenando que ele procedesse ao sequestro dos bens e papéis dos religiosos, e que eles permanecessem detidos e proibidos de se comunicarem com quaisquer outras pessoas. Em sua carta, D. José reporta-se às “perniciosas maquinações” que os integrantes da Companhia vinham realizando, as quais concorriam para “alienar os meus leais Vassalos do amor e da fidelidade à minha Real Pessoa e Governo”. A partir daí, a permanência da Companhia de Jesus em Portugal mostrou-se insustentável, ainda que a decisão de expulsa-la só viesse a ocorrer no início do mês de setembro daquele ano. Nessa ocasião, D. José enviou uma carta ao Cardeal Patriarca de Lisboa, d. Francisco de Saldanha da Gama, que havia sido nomeado pelo papa como Reformador Geral daquela ordem religiosa, informando-o das providências que havia tomado para, segundo ele, fazer cessar os ataques que os jesuítas vinham dirigindo contra sua pessoa, seus domínios e seus vassalos.
Entretanto, em 28 de junho de 1759, antes da expulsão ser decidida, D. José publicou um Alvará no qual declarava: “Sou servido privar inteira e absolutamente os mesmos Religiosos em todos os meus Reinos e Domínios dos Estudos de que os tinha mandado suspender”. Com esta disposição, as escolas dos jesuítas foram fechadas, mediante a alegação de que suas aulas promoviam “perniciosos e funestos efeitos”, os quais eram opostos àqueles que se esperava para a “edificação” dos jovens e “fieis vassalos”. Os padres da Companhia de Jesus foram acusados de ministrar ensinamentos que concorriam para a “ruína não só das Artes e Ciências, mas até da mesma Monarquia e da Religião que, nos meus Reinos e Domínios, devo sustentar com a minha Real e indefectível proteção”. Este mesmo argumento já havia aparecido na carta ao Regedor da Casa da Suplicação, na qual D. José declarava que as medidas tomadas contra os jesuítas tinham por objetivo a “defesa da minha Real Pessoa e Governo, e do sossego público dos meus Reinos e Vassalos”.
Como sabemos, a reforma do sistema de ensino foi uma das tantas “providências” com as quais D. José – na ótica de seu secretário de estado, o marquês de Pombal – buscou dissipar as “trevas” e reparar as “ruínas” nas quais havia encontrado “sepultados os seus reinos”. Em 1775, o marquês de Pombal saudava o estado de desenvolvimento da filosofia e belas artes, “que servem de base a todas as ciências”, assim como das “ciências maiores”, responsáveis pelas “claríssimas luzes” que destacavam Portugal frente aos demais reinos europeus, declarando: “As nações que, com arrogância, vanglória e superioridade, olhavam antes para a portuguesa como bisonha, rude, inerte e destituída de todos os elementos e princípios das artes fabris e liberais, e dos verdadeiros conhecimentos das ciências maiores, acabaram agora de ter o último desengano, de que a respeito das primeiras nos achamos com elas igualados, e a respeito das segundas excedemos a maior parte delas [...]” (MELO, s/d, p. 245 e 249).
A importância de que estava revestido o ensino naquele reinado pode ser percebida em um Alvará de 24 de fevereiro de 1764, por intermédio do qual se regulamentava os recrutamentos para as forças militares portuguesas: “Ordeno que a mesma atenção [isenção do recrutamento] se tenha com os Estudantes que nos Colégios e Universidades se aplicam às Artes e Ciências, sendo tão necessárias para o decoro e conservação do Reino, as Armas como as Letras” (p. 88-89).
Retomando o contexto do conflito entre a Coroa portuguesa e a Companhia de Jesus, verifica-se o uso de certas palavras ou expressões que possibilitam discutir alguns aspectos da sociedade e da política lusa daquele período. Na Lei de expulsão dos jesuítas e na Carta ao Cardeal Patriarca de Lisboa, ambas da mesma data (03 de setembro de 1759), o rei português considerou que os padres da Companhia de Jesus, com as suas ações, estavam atentando contra a sua “Fama” e “Real Reputação” e, com isso, ameaçavam a tranquilidade pública do reino e o reconhecimento de sua autoridade frente a outros soberanos europeus. Neste aspecto, como lembrava Emmerich de Vattel (2008, p. 413), em obra publicada em 1758, “o soberano representa a nação inteira; reúne em sua pessoa toda a majestade da nação”.
A expulsão dos jesuítas foi decidida após o rei ouvir seus Conselheiros, os quais deviam zelar pelo “Real serviço e decoro” (nosso destaque). A medida foi entendida como o instrumento que poderia garantir o “decoro da Majestade” (nosso destaque), ou seja, daquela autoridade que estava representada na pessoa do soberano, entendida como a “Alma vivificante de toda a Monarquia”.
O Cardeal d. Francisco de Saldanha da Gama, após receber a carta enviada pelo rei, fez publicar, em 05 de outubro de 1759, uma Pastoral, na qual informava aos religiosos seus subordinados e fieis que D. José havia resolvido “expulsar de todos os seus Reinos e Domínios, por justos e necessários motivos, os Clérigos Regulares da Companhia de Jesu[s]”. O Cardeal assinalava que, ao se resistir às leis e ordens baixadas pelo soberano, ofendia-se “gravemente a Majestade Divina, porque o poder dos Monarcas não era senão de Deus”. Assim, o Patriarca de Lisboa considerava os jesuítas merecedores do castigo que lhes havia sido imposto, pois eles haviam se afastado “do seu santo Instituto” e conspiraram “não só contra a sagrada pessoa do seu Monarca e contra os seus Domínios mas, ainda com escandalosa obstinação, pretendem ofender-lhe a sua reputação e seu Real respeito” (nosso destaque).
Nos documentos mencionados, nota-se que diversas expressões são utilizadas para apontar, por um lado, a necessidade de preservação da figura pública do soberano e, de outro, as ofensas e “usurpações” que teriam sido praticadas pelos jesuítas contra a figura pública do mesmo soberano. A autoridade, a reputação e a fama do soberano estavam sendo atacadas e era obrigação do rei adotar as medidas necessárias para a sustentação do “Real decoro”, preservando a fonte de sua autoridade e soberania. Do decoro dependia a boa fama e a reputação de seu reino, como ficaria expresso no já mencionado Alvará de 24 de fevereiro de 1764, que considerava as Armas e as Letras instrumentos necessários “para o decoro e conservação do Reino”.
O conflito com a Companhia de Jesus não foi o único embate entre a Coroa portuguesa e a Igreja católica. Em 1760, D. José decidiu cortar relações com a Santa Sé, uma situação que perdurou por dez anos. Conforme Joaquim Veríssimo Serrão (1987, p. 103), a extinção da Ordem jesuíta, decidida pelo papa Clemente XIV, em 1773, e as condições do reatamento com Roma foram essenciais para o fortalecimento de uma política que defendia a existência “de uma igreja nacional submetida à vontade régia”, posto que era necessário “contar com a fiel colaboração do alto clero” na condução dos negócios do Estado. Esta posição estava apoiada em uma doutrina política, chamada ‘regalista’, que vinha sendo adotada, a qual, em linhas gerais, defendia a supremacia do poder temporal no âmbito das questões seculares, enquanto aos religiosos competia unicamente atender às questões espirituais.
Além das disputas com a Igreja, aquele reinado ficou marcado pela “cena atroz do suplício de Belém”, em 13 de janeiro de 1759, quando foram executados o duque de Aveiro e diversos membros da família do marquês de Távora, acusados de atentarem contra a vida de D. José: “Tudo se processou com inaudita violência, como se a justiça régia buscasse extrair uma lição para quantos ousassem atentar contra a vida do soberano” (SERRÃO, 1987, p. 86). Anteriormente, em 1757, havia ocorrido uma revolta de populares e de pequenos comerciantes na cidade do Porto, inconformados com o monopólio concedido à Companhia das Vinhas do Alto Douro para a comercialização do vinho. Neste último caso, as sentenças foram assim justificadas: “A rebelião de grande parte da plebe de uma cidade, que depois da Corte é sem disputa a maior e mais opulenta desta monarquia, foi um dos casos mais estranhos do presente século; especialmente porque a toda nação portuguesa causa horror o menor movimento, que possa parecer infidelidade ao seu soberano, a quem os súditos respeitam, mais com amor de filhos que de vassalos” (apud SERRÃO, 1987, p. 134).
Como vemos, na segunda metade da década de 1750, estava em curso um processo que buscava afirmar a centralidade do poder régio, especialmente frente à nobreza titulada e à Igreja. O rei, assim, procurava mostrar-se como a representação do Estado; atacá-lo, física ou moralmente, significava atacar a soberania do próprio Estado e nação. O Rei, encarnado na pessoa física do rei, “deseja apenas o bem dos súditos”, devendo combater as injustiças e as desordens que ameaçassem os territórios sob seu domínio: “Toda Justiça, todo Saber, são atribuídos ao príncipe, porquanto essas atividades se exercem no interior de seu corpo simbólico” (APOSTOLIDÈS, 1993, p. 13).
Sobre esta relação entre o soberano e a nação, parece interessante retomar o já mencionado Emmerich de Vattel (2008, p. 165 e 163), para quem “toda nação é obrigada a conservar-se”, sendo este um dever “para consigo mesma”, devendo seguir uma regra fundamental: “todo ser moral deve viver de uma maneira conveniente com sua natureza, naturæ convenienter vivere” (itálicos no original; nosso destaque).
Ainda que Vattel não utilize a palavra decoro, a expressão “viver de uma maneira conveniente com sua natureza” traduz um dos entendimentos que se construiu acerca daquela palavra, no século XVIII. O autor do Vocabulário português e latino, padre Rafael Bluteau, definiu decoro como o “que é digno de qualquer pessoa e do lugar que tem, e tão proporcionado ao seu estado, que nem exceda às suas forças, nem seja inferior à sua qualidade” (BLUTEAU, 1713 [v. 3], p. 29); por sua vez, ao final do século XVIII, Antonio de Moraes Silva (1789 [v. 1], p. 365) registrou a seguinte definição para a palavra: “a conveniência das ações e outras exterioridades com o caracter [a qualidade] da pessoa”.
Conforme o que vem sendo exposto, nota-se que o decoro, naquele contexto, está relacionado à imagem com que se apresenta e se representa determinado “ser moral” (nas palavras de Vattel), sendo um atributo que confere ao seu possuidor as honras que lhe são inerentes, as quais devem ser observadas por todos os demais. Por isso, o argumento utilizado pelo rei ao decretar a expulsão dos jesuítas: ele assim o fazia para preservar o “decoro da Majestade”.
Para concluirmos estes breves comentários sobre os usos e significados da palavra decoro, em meados do século XVIII, em Portugal, parece-nos interessante retomar algumas considerações que Roger Chartier (1990, p. 17) produziu acerca do conceito de representação, lembrando que, para identificarmos “as representações do mundo social” torna-se necessário relacionar os “discursos proferidos com a posição de quem os utiliza”. O mesmo Chartier (1990, p. 20 e 23) indica que a noção de representação não era “estranha às sociedades de Antigo Regime”, sendo utilizada pelos sujeitos daquele contexto para “compreender o funcionamento da sua sociedade ou definir as operações intelectuais que lhes permitem apreender o mundo”.
Assim, a noção de representação, naquele contexto, “permite designar e ligar três realidades maiores: primeiro, as representações coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do mundo social e estruturam os esquemas de percepção e de apreciação a partir dos quais estes classificam, julgam e agem; em seguida, as formas de exibição do ser social ou do poder político tais como as revelam signos e performances simbólicas através da imagem, do rito ou daquilo que Weber chamava de ‘estilização da vida’; finalmente, a ‘presentificação’ em um representante (individual ou coletivo, concreto ou abstrato) de uma identidade ou de um poder, dotado assim de continuidade e estabilidade” (CHARTIER, 1994, p. 104).
O rei d. José representava (presentificava) uma instância de poder (o Rei, o soberano), sendo ele a imagem desse poder, que lhe cabia resguardar. Nos documentos acima indicados, foi possível observar que diversas autoridades civis e eclesiásticas fizeram uso de discursos que avivaram determinadas representações acerca da ordem social que deveria presidir as relações entre os diferentes agentes daquela sociedade. O ato da expulsão, dentro desses discursos, teve a finalidade de repor a ordem que havia sido subvertida, para que o “decoro da Majestade” fosse restabelecido, em conformidade com a teoria e prática políticas vigentes à época.